Dando sequência às nossas análises de episódios de Jornada nas Estrelas, retornemos à série clássica para falar do terceiro episódio da primeira temporada, intitulado “O Estranho Charlie”.
Qual é o plot desse episdódio? Um cargueiro se encontra com a Enterprise para trazer um estranho passageiro: um adolescente náufrago chamado Charlie Evans, que viveu quatorze anos sozinho, desde que tinha apenas três anos. Ele será transferido pela Enterprise para uma colônia e mal teve contato com humanos. O capitão do cargueiro está em silêncio e Charlie faz uma cara onde revira os olhos e, logo, o capitão do cargueiro enche Charlie de elogios, dizendo que ele conseguiu, com sua inteligência, sobreviver ao naufrágio de forma bem competente. Charlie fica curioso com a Enterprise e as centenas de tripulantes, interrompendo a conversa de Kirk com o capitão do cargueiro à todo momento. Kirk chama a atenção de Charlie para isso. Kirk pergunta se o capitão precisa de alguma coisa e o capitão diz que não precisa de nada (nem de conhaque sauriano). Kirk estranha isso. Kirk manda a ordenança Rand levar Charlie para seus aposentos e o garoto fica estupefato em ver uma mulher pela primeira vez.
Charlie faz exames médicos na enfermaria e está em perfeita saúde. Ele pergunta a McCoy se o doutor gosta dele e McCoy diz “Por que não?”. Charlie dizia que as pessoas da outra nave em que ele estava não gostavam dele. McCoy, achando que aquilo é uma inofensiva insegurança adolescente, o conduz para os aposentos. Charlie anda pela nave e vê dois tripulantes se cumprimentando, dando um tapa no outro. Charlie encontra Rand e consegue dar o perfume preferido dela, intrigando a tripulante. Eles marcam para conversar e, depois do combinado, Charlie dá um tapa na bunda de Rand, como viu os outros dois tripulantes fazerem. A ordenança chama a atenção de Rand, dizendo que ele não pode fazer isso com as mulheres e pede para que o capitão ou o doutor explicarem por que.
Na ponte, McCoy insiste a Kirk que Charlie precisa de uma figura paterna e Kirk joga a batata quente para o doutor. Já Spock insiste na hipótese de que o planeta em que Charlie estava era habitado, pois Charlie, só com três anos e um ano de comida, não poderia ter sobrevivido sozinho.
Na área de recreação, temos a famosa sequência onde Uhura canta com o acompanhamento de Spock tocando a sua lira irada. Uhura canta e a letra da música é mais uma cantada explícita em cima do vulcano (J. J. Abrams deve ter visto isso). Charlie, que estava dentro da área de recreação, também recebe uma canção de Uhura, mas ele não gosta de ficar exposto perante o público e, com o seu poder, tira a voz de Uhura. Charlie faz alguns truques de cartas para impressionar Rand e faz sucesso entre as pessoas. Mais tarde, Charlie pergunta a Kirk por que não pode bater na bunda de mulheres e o capitão fica todo sem jeito para explicar, num exemplo explícito de puritanismo WASP da década de sessenta dos Estados Unidos em pleno século 23.
Kirk recebe um chamado de que o capitão que trouxe Chrlie quer falar com ele. O rapaz pediu para ir à ponte junto. O capitão não consegue se comunicar com a nave e o sinal desaparece. Charlie falou que a nave era “muito fraca”. Logo depois, Spock descobre pelos sensores que a nave onde estava o capitão explodiu. Ainda, Kirk havia mandado sintetizar carne de peru para o Dia de Ação de Graças. E agora a cozinha da nave estava com perus de verdade. Cherlie escondeu um sorrisinho e saiu da ponte pelo elevador. Tudo isso acabou despertando em Kirk suspeitas sobre Charlie.
Kirk e Spock jogam xadrez tridimensional (provavelmente, a primeira vez que esse jogo aparece na série). Spock diz taxativamente que Charlie deve ter algo a ver com o evento da explosão da nave. Kirk, embora com suspeitas, ainda acha que Spock está exagerando. Charlie entra na área de recreação e ele e Spock começam a jogar. Spock vence Charlie, mas ele não aceita. Spock simplesmente sai de perto e deixa Charlie com cara de tacho. Charlie se revolta e derrete as peças brancas. Charlie chega perto de Rand e praticamente se declara a ela. Rand chega a Kirk e pede para que ele fale com Charlie para se afastar dela, pois pode magoá-lo. Kirk, com um olhar maroto, diz que vai fazer isso. O capitão diz que Charlie não pode pressionar e fala que há uma diferença de idade entre Charlie e Rand (mais uma vez a mentalidade da década de sessenta) e que Charlie deve aprender a conviver com isso (há coisas no Universo que podemos ter e outras que não). Kirk lave Charlie para fazer exercícios físicos, mas o garoto não quer muito fazer isso. Kirk insiste e treina luta com Charlie. O capitão derruba o garoto e um tripulante acha graça. Charlie, enfurecido, faz o tripulante desaparecer. KIrk chama a segurança para confinar Charlie nos aposentos. Charlie imobiliza os seguranças. Kirk, no melhor estilo macho alfa, ordena que Charlie vá aos aposentos, ou vai “pegá-lo na marra”. Charlie acaba cedendo e vai com os seguranças. Kirk descobre que todos os phasers da nave desapareceram, alem do phaser do segurança que tentou imobilizar Charlie.
Kirk, Spock e McCoy se encontram na sala de reuniões e o vulcano diz que os thasianos (povo alienígena do planeta em que viveu Charlie) têm o poder de transmutar objetos e torná-los invisíveis, e que parece que Charlie tem o mesmo poder. Eles chegam à conclusão de que Charlie é um perigo, pois tem todo esse poder com uma mentalidade adolescente e Kirk é a única pessoa que o respeita. Nisso, Charlie entra com um segurança. Kirk pergunta se Charlie destruiu a nave e ele diz que sim, pois a tripulação não gostava dele.
Kirk não quer levar mais Charlie para a colônia em virtude do perigo do garoto. Mas Charlie toma o controle da nave e coloca Spock numa situação humilhante, forçando-o a recitar poesias. Kirk lhe dá uma bronca e o garoto recua. Spock diz que uma hora harlie não mais recuará. E Kirk sabe disso. Charlie invade os aposentos de Rand e tenta forçá-la a amá-lo. Ela lhe dá um tapa no rosto e ele faz Rand desaparecer. Spock e Kirk, que ficaram sabendo que Charlie estava nos aposentos de Rand porque ela ligou o áudio e eles escutaram da ponte, estão nos aposentos da ordenança e escutam Charlie dizer que precisa de Kirk, pois a Enterprise é uma nave maior para Charlie controlá-la sozinho. Charlie começa a tripudiar da tripulação.
Na ponte, Uhura diz que está recebendo uma transmissão nave a nave. Kirk pergunta a Charlie sobre isso mas o garoto desconversa. KIrk percebe que, desde que Charlie assumiu o controle da nave que ninguém mais desapareceu. Kirk orquestra um plano com McCoy e Spock (Charlie havia saído da ponte momentaneamente) para distrair Charlie e sedá-lo, mesmo sendo muito arriscado, pois Kirk achava que, assim que a Enterprise chegasse à colônia, Charlie se livraria de todo mundo. Kirk desafia Charlie e o garoto imobiliza o capitão. Uma mensagem chega à nave vinda de Thasius. Rand aparece na ponte. Algo aparece na tela e Charlie começa a gritar, implorando que não deixem levá-lo. Uma face verde aparece flutuando na ponte e Charlie, totalmente vulnerável, implora mais ainda para ser levado para a colônia. O thasiano (a face verde) disse que assumiu sua forma de séculos atrás para falar com a tripulação e se desculpa por não ter conseguido salvar a primeira nave, mas colocou tudo de volta ao normal na Enterprise. Charlie implora para ficar na Enterprise. Kirk fala ao thasiano que Charlie poderia viver com os humanos e ser ensinado a não usar seus poderes. O thasiano diz que isso seria impossível e, das duas uma: ou Charlie destruiria a raça humana ou os humanos o destruiriam. Já os thasianos cuidariam de Charlie. O thasiano fala para Charlie vir com ele e desaparece. Charlie implora para ficar, pois os thasianos não podem sentir, amar, nem serem tocados. Implorando a Rand e à tripulação, Charile lentamente desaparece. Uhura diz que Charlie está à bordo da nave thasiana e que ela vai embora. Rand chora e Kirk diz que tudo está bem. Mas toda a tripulação está mortificada na ponte. Fim do episódio.
O que podemos dizer desse episódio escrito por D. C. Fontana e Gene Roddenberry? Em primeiro lugar, é impossível não se lembrar de Q em TNG quando vemos esse episódio, lembrando que o episódio piloto de TNG, onde Q aparece pela primeira vez, foi também escrito pela dupla Fontana – Roddenberry. E aí a gente se pergunta se Q não recebeu influência de Charlie, até porque, mesmo sendo interpretado por um adulto como John De Lancie, Q, em sua ironia e sarcasmo, poderia ser engraçado bem ao estilo da imaturidade de um adolescente (podemos nos lembrar quando o contínuo chega a tirar os seus poderes, assim como vemos Charlie ficar subjugado pelos thasianos). De repente, Q, que aparece justamente no início de TNG (assim como Charlie aparece bem no início de TOS), pode ter sido uma visão um pouco mais desenvolvida e trabalhada de Charlie, pois no fundo, os dois têm a mesma essência (superpoderes que a tudo subjugam). De qualquer forma, foi angustiante ver toda uma tripulação, nave e tecnologia ficarem à mercê de um adolescente tão instável emocionalmente, sendo que o único freio desse adolescente era o respeito por Kirk e a necessidade de ter o capitão por perto, já que Charlie não conseguia (e essa era a sua limitação) controlar a Enterprise como um todo, por ser uma nave muito grande. Ainda assim, era muito pouco para a tripulação ter um controle mínimo sobre o garoto.
Os ecos de uma produção datada novamente apareceram nesse episódio. Um puritanismo WASP novamente assombrou a utópica tripulação do século 23, sendo na falta de jeito de Kirk de explicar a Charlie como um homem se deve tratar uma mulher, seja na recusa de um romance entre Charlie e Rand por esta última ser mais velha. Como já foi mencionado em análises anteriores, por melhores que sejam as intenções utópicas da obra e de quem as escreve, é muito difícil se escapar dos vícios e hábitos da época em que a obra é escrita. Pelo menos, houve um bom desenvolvimento da personagem da ordenança Rand, que deixou de ser o mero símbolo sexual de “O Sal da Terra” para ser uma personagem com mais profundidade neste episódio, já que o relacionamento entre Rand, como uma mulher mais velha que precisa lidar com a delicada situação de não magoar uma paixão adolescente, e o inexperiente Charlie, levou a ótimos momentos no episódio. Ajudou também na construção de Kirk, que agiu em boa parte do episódio como uma espécie de apoio paternal. Creio que tudo isso tenha acontecido por mérito de Dorothy Fontana, que foi uma excelente roteirista de Jornada nas Estrelas, mesmo que alguns digam que Rooddenberry teve uma participação no que ela escreveu. Quando vemos uma história escrita por Fontana, sempre nos vêm à cabeça a sensação de que há um algo a mais ali.
Mas o mais surpreendente é o desfecho do episódio, que dá mais profundidade ainda à Charlie. Se no início do episódio a gente simpatizava com o garoto por sua inexperiência adolescente (com a qual todos nós poderíamos perfeitamente nos identificar), com o desenrolar da história, sua onipotência e instabilidade o transformam num vilão maligno. Mas o fim do episódio deixa nosso Charlie numa situação de vulnerabilidade total frente aos thasianos. E aí, passamos a sentir pena do garoto, pois, contra a sua vontade ele vai ficar preso à uma civilização que não tem qualquer sentimento ao toque humano e ao amor, coisas que ele tinha experimentado na Enterprise e queria explorar mais. Voltamos a ver Charlie como um adolescente inexperiente e que não sabe lidar com suas emoções. Entretanto, aquele mal ao qual Charlie será obrigado a passar é absolutamente necessário, já que seu convívio com os humanos é extremamente perigoso. Resta à tripulação assistir, mortificada, ao destino imposto à Charlie e, principalmente, a vermos Rand, chorosa e entristecida, lamentar o que aconteceu com o adolescente, justamente Rand, que mais havia sofrido nas mãos de Charlie. Ou seja, um desfecho que complexifica um personagem que poderia ser visto apenas como um plano vilão odioso que merece ser castigado. Devemos sempre nos lembrar que Jornada nas Estrelas era um programa televisivo de entretenimento e tal profundidade de personagem em Jornada nas Estrelas era, já nos primeiros episódios, um cartão de visitas de que não víamos um produto cultural qualquer.
Dessa forma, se “O Estranho Charlie” nem sempre é bem visto por algumas pessoas do fandom, ainda assim é um episódio cheio de virtudes da gênese de Jornada nas Estrelas e merece ser revisitado.