Mais um filme da fase alemã de Fritz Lang. “A Morte Cansada” (“Der Müde Tod”, 1921), é um clássico do expressionismo alemão e mostra uma curiosa faceta daquela que ninguém consegue evitar. Permitam-me uma pequena observação pessoal, mas essa é a minha personificação da morte preferida, batendo até a de “Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman. É uma morte legal, embora um tanto blasé. Para podermos falar do filme, vamos ter que liberar os spoilers de noventa e nove anos.
O plot é o seguinte. Um jovem casal (interpretado por Lil Dagover e Walter Janssen) chega a uma cidade numa carruagem juntamente com um estranho homem. Ele compra um terreno público que seria usado como a extensão do cemitério local para fazer um jardim, que tem um muro intransponível. O casal e esse homem estão numa espécie de bar. A moça se retira momentaneamente e, quando volta, não vê mais seu amado nem o estranho homem. Depois de procurar, chega ao tal muro e encontra o estranho homem que é a morte (interpretado por Bernhard Goetzke). A moça implora para ter seu amado de volta, mas a morte diz que a hora dele chegou. A morte ainda diz que está cansada de fazer valer a vontade de Deus e de ser tão mal falada pelas pessoas. A morte conduz a moça a uma sala cheia de velas, algumas compridas, outras curtas, dizendo que cada vela representa a vida de uma pessoa e a duração da vida da mesma. Compadecida do sofrimento da moça, a morte mostra três velas que representam três pessoas de diferentes épocas que estão à beira da morte e, que se ela conseguir evitar uma dessas mortes, tem o seu amado de volta. Uma das velas é a de um francês que namora a irmã de um califa; outra é a de um amante de uma mulher prometida a um nobre da Veneza do século XVII e outra é a de um namorado de uma moça que é cobiçada por um Imperador da Antiga China. Nas três histórias, a moça falha em evitar a morte de seu amado. A morte lhe concede uma última chance, onde a moça terá uma hora para convencer alguém a substituir seu amado e morrer no lugar dele. É claro que ela não logrará êxito. Mas, num incêndio, ela tenta pegar uma criança que está presa no fogo e, na hora de entregá-la à morte, ela desiste, entrega a criança pela janela à mãe, e volta para dentro da casa em chamas, sendo levada pela morte para seu amado, sacrificando-se, pois a vida solitária sem o amado não tem sentido.
O que podemos falar desse filme em primeiro lugar? Deve ter sido uma produção um tanto complicada, já que três ambientes históricos tiveram que ser reproduzidos, exigindo muito do figurino e de uma quantidade razoável de figurantes. As histórias árabe e chinesa parecem ter sido as mais dispendiosas, ao passo que vimos algo um pouco mais econômico na história sobre a Veneza do século XVII, onde a interpretação de Rudolf Klein-Rogge (sempre ele!) como o futuro marido ao qual a personagem de Lil Dagover foi prometida foi primorosa. O filme ainda tem uma estética expressionista marcante, seja nas atuações de Lil Dagover, mesmo que elas tenham sido um pouco contidas em alguns momentos, seja no uso bem competente do claro/escuro, tanto nas locações externas quanto internas. A cena da sala onde estão as velas foi a de maior plasticidade e contraste do filme. Se Lil Dagover foi a protagonista e já nos brindou com sua competência, fazendo vários papéis no filme, além de ter mostrado seu talento camaleônico em “Harakiri” e “As Aranhas”, chama muito a atenção a morte de Bernhard Goetzke, onde sua face sinistra abriga, na verdade, uma morte piedosa e complacente, pois ela já está cansada de fazer a vontade de Deus e de ser mal falada por isso. Ou seja, entra um questionamento aí dos desígnios de Deus no filme que desperta a nossa curiosidade. E aí, o fato da morte dar algumas chances para a personagem de Lil Dagover tentar trazer seu amado de volta à vida pode soar como uma espécie de rebelião a esses desígnios divinos, como se a morte quisesse se isentar de provocar tanta tristeza e assinalar o verdadeiro responsável pelo fim da vida das pessoas, no caso Deus. Talvez ´possamos enquadrar a morte de facce sinistra e comportamento complacente de Bernhard Goetzke como mais um dos duplos expressionistas que povoam a filmografia de Lang.
Dessa forma, “A Morte Cansada” é uma grande película de Fritz Lang, seja pela estética das imagens em claro/escuro, seja pelas interpretações notáveis de Dagover e Goetzke, seja pela morte duplamente sinistra e complacente que não aguenta mais cumprir os desígnios de Deus e ser responsabilizada por isso. Um filme com três histórias dentro da história principal que primam pelos figurinos, excesso de figurantes e cenários. Não deixe de ver o filme na íntegra legendado em português abaixo.