Dentre as análises da carreira americana de Fritz Lang, falemos de “O Diabo Feito Mulher” (“Rancho Notorius”, 1952), o terceiro Western do diretor austríaco, que conta com a participação toda especial de Marlene Dietrich. Só quero dizer inicialmente que simplesmente odeio o título em português do filme, além de achá-lo uma tremenda duma sacanagem com Marlene Dietrich. Para podermos falar mais sobre o filme, vamos liberar os spoilers de sessenta e oito anos.
O plot é o seguinte. Vern Haskell (interpretado por Arthur Kennedy) tem a sua noiva assassinada num assalto. Ele vai atrás dos assaltantes com alguns homens e o xerife da sua cidade, mas todos recuam quando chegam aos limites legais da jurisdição do xerife, sem falar que dali para a frente era território Sioux. Vern, revoltado, continua sozinho. Ele acha um dos bandidos, que foi alvejado pelo assassino de sua noiva numa discussão e extrai do homem moribundo apenas que o outro bandido foi para um lugar chamado Chuck-a-Luck. Vern sai procurando por aí, até que, numa barbearia, ao mencionar o nome Chuck-a-Luck, é interpelado de forma agressiva por um homem, que menciona o nome de Altar Keane. Os dois começam uma luta de vida e morte e Vern mata o sujeito que era procurado por assaltar diligências e, ao invés de ser preso, ainda recebeu uma recompensa do xerife, que Vern deu de bom grado ao dono da barbearia, que foi destruída na luta. Mas Vern aproveitou a oportunidade para perguntar sobre Alter Keane. Ele descobriu que ela era uma espécie de cantora e dançarina de cabarés e bares, que pulava de cidade em cidade. Vern seguiu os passos da estranha mulher até chegar em Frenchy Fairmont (interpretado por Mel Ferrer), que a conhecia. O homem estava preso e Vern deu um jeito de ser preso também e libertar Frenchy, para conquistar a confiança dele. Frenchy o leva então para um distante rancho, cuja dona é Alter Keane (interpretada por Dietrich). Ela conseguiu o rancho depois de se demitir de um bar onde era cantada de forma agressiva com os homens e ganhar uns jogos de roleta com a ajuda de Frenchy, que se apaixonou por ela. Keane criava cavalos e abrigava bandidos procurados no rancho. Vern, para verificar se o assassino de sua esposa estava pro lá, se tornou atrevido o suficiente para se aproximar de Keane, que cai em suas graças e desperta os ciúmes de Frenchy. Este organiza um assalto a um banco, enquanto que o assassino da noiva de Vern descobre que este está atrás dele e tenta matá-lo, em vão. Vern encara o assassino mas o xerife chega primeiro e o prende. Mas os demais bandidos do rancho libertam o assassino. Vern vai entregar a parte dela no assalto e abre o jogo com Keane, reclamando que ela abriga bandidos e o assassino de sua noiva. Keane pretende deixar tudo, mas Frenchy chega, tentando demovê-la. Os demais bandidos, liderados pelo assassino da noiva de Vern chegam e querem todo o dinheiro do assalto. Um tiroteio generalizado começa, provocando a morte de quase todos, com exceção de Vern, Frenchy e alguns bandidos que são dominados. Keane é alvejada e morre. O filme termina com os dois homens que disputaram Keane indo embora juntos e a canção que permeia todo o filme dizendo que os dois lutaram até a morte.
Esse foi o primeiro Western que tem uma canção que “conta” a história, somente a título de curiosidade. Reza a lenda, também, que o relacionamento entre Dietrich e Lang não foi dos melhores durante as filmagens. A atriz, inclusive, se referia a Lang como um “homem horrível”. E é um Western que joga para escanteio o “happy end”, pois a mulher disputada pelos protagonistas morre no tiroteio. Mulher essa que assume uma posição forte e independente na época, com a ajuda de Frenchy, mas é colocada numa incômoda posição na trama, pois ela usa o seu rancho para abrigar foras-da-lei e facínoras de toda a espécie. Quando ela abre os olhos para seus malfeitos em virtude da caçada de Vern, já é tarde e ela acaba vitimada pelo tiroteio provocado pelos varões que ela abrigava em sua casa, tal como se fosse uma espécie de punição por sua vida de crimes e por sua “empáfia” em ser uma mulher forte numa terra e época onde os homens davam as cartas. Esse é um dos motivos pelos quais odeio o título em português do filme, pois somente aumenta a visão ultramachista sobre a ousadia da personagem Keane na película. E aí, temos um desfecho deprimente, com Vern e Frenchy abandonando juntos o rancho e ainda com a música dizendo que os dois morreram em duelo, algo que pode ter acontecido depois do final da película, ou somente caiu no campo da lenda, já que os dois desapareceram juntos. Pelo menos, ficou aqui a impressão de que Lang mais uma vez deixou a sua visão de que “a morte não é uma solução”, pois a vingança, tão corriqueira nos Westerns, não apresentou qualquer resultado positivo aqui, já que Keane, disputada por dois homens, morre ao final. Talvez nem tão disputada assim, pois Vern apenas cortejava Keane para pôr em prática o seu plano de vingança. Ou seja, uma mulher mais velha, que se apaixonou por um rapaz mais novo, ainda teve essa decepção de se sentir usada por ele. Tudo isso perante um Frenchy que realmente a amava e ficava submisso a ela.
Dessa forma, “O Diabo Feito Mulher” é mais um Western de Lang que questiona a vingança corriqueira dos Westerns e, se mostra a personagem de Dietrich como uma mulher forte que comanda muitos homens, também pune essa mesma personagem por sua empáfia de desafiar uma cultura ultramachista como a do Velho Oeste Americano. Um filme para refletir, e muito. Infelizmente, não foi achada uma versão na íntegra no Youtube. Fique com o trailer do filme.