A Netflix nos brindou com uma curiosa cinebiografia sobre Marie Curie, que recebeu dois prêmios Nobel por suas pesquisas sobre radioatividade. Apesar da justa homenagem, o filme nos deixa um estranho gosto de derrota. Para podermos falar um pouco sobre isso, vamos precisar dos spoilers de sempre.
Vemos aqui a trajetória de Marie Sklodowska (interpretada por Rosamund Pike), uma cientista polonesa radicada em Paris na virada do século XIX para o XX que busca espaço num meio eminentemente masculino, como o era com quase tudo naquela época. Ela é uma pessoa muito dura e exigente, até para sobreviver nesse meio, mas acaba sendo expulsa do laboratório onde trabalhava, tendo que pensar numa carreira solo. Entretanto, ela conhece Pierre Curie (interpretado por Sam Riley), um cientista que admira demais o seu trabalho e que é também apaixonado por ela. Ele propõe que trabalhem juntos em seu laboratório, mas a cientista à princípio oferece uma resistência muito grande à ideia, com Pierre convencendo-a paulatinamente. O trabalho dos dois rende frutos e eles descobrem dois novos elementos químicos, além das propriedades radioativas deles. Isso renderá o Prêmio Nobel de Física, mas que foi atribuído apenas a Pierre Curie, que vai receber o prêmio enquanto Marie está grávida e doente. Marie não aceita muito a questão, achando que Pierre se dobrou ao machismo da época e à vaidade. Marie também estranha os interesses de Pierre com o espiritismo, para o qual não existia base científica segundo ela. Mas o casamento, apesar dos percalços, continuava seu curso, até que foi abruptamente encerrado com a morte de Pierre, atropelado por uma carruagem, o que deixou Marie completamente desorientada. Ela vai buscar conforto afetivo num dos amigos de Pierre, que é casado, e isso se torna um escândalo na sociedade da época, onde todo o preconceito contra a mulher, a xenofobia e antissemitismo dos franceses caíram como uma tempestade sobre Marie. Isso não impediria que ela ganhasse um segundo Prêmio Nobel, agora de Química, com a cientista indo recebê-lo dessa vez, sendo recebida de braços abertos pela comunidade feminina da Noruega, mais avançada na época na luta pelos direitos da mulher. Vem a Primeira Guerra Mundial e a filha de Marie, que trabalha como enfermeira e também cientista nas pesquisas sobre radioatividade, convence a mãe a usar o raio-x nos campos de batalha para evitar as inúmeras amputações que os soldados sofriam e podiam ter sido evitadas. Ela vai novamente travar uma batalha contra os cientistas varões que sempre lhe impuseram restrições, mas desta vez ela está mais esperta quanto a isso e os ameaça com denúncias à imprensa, conseguindo o que queria, que eram ambulâncias equipadas com aparelhos de raios-x para serem usados no front de guerra, para onde ela foi com a filha para prestar assistência aos soldados feridos.
Esse é um filme que pretende ser uma cinebiografia honrosa à famosa cientista, e ele consegue fazer isso em muitos momentos, principalmente no que tange à luta dela contra o machismo, as convenções sociais e a xenofobia da época. Entretanto, o filme tem um gosto enorme de derrota, principalmente quando se refere à descoberta de Curie com relação à radioatividade. Vemos aqui um processo de definhamento do casal protagonista que, em virtude de suas experiências, ficava muito exposto à radiação e adoecia a passos largos, algo que sabemos que realmente aconteceu (é só ver as fotos reais de Marie Curie com o passar dos anos para atestarmos que seu envelhecimento foi muito precoce). Mas o que realmente incomodou é que a cinebiografia era interrompida em alguns momentos para dar alguns saltos no futuro e víamos as consequências da descoberta da radiação para o mundo. Se o primeiro salto para o futuro ainda mostrava o uso da radiação como tratamento inovador para o câncer na década de 50, por outro lado, tivemos a explosão da bomba atômica em Hiroshima, os testes nucleares americanos no Deserto de Nevada, e o acidente em Chernobyl, dando uma impressão de que a descoberta da cientista foi muito mais prejudicial à humanidade do que benéfica. Nem o esforço hercúleo de nossa protagonista no uso do raio-x na Primeira Guerra, nem o diálogo imaginário entre Marie e Pierre no final do filme que buscava absolvê-la dos malfeitos da humanidade nos usos da radiação (Pierre metaforicamente disse que Marie jogou uma pedra no lago mas ela não tem o controle das ondas que a pedra provocou) parecem apagar a impressão negativa da radiação, o que torna essa cinebiografia no mínimo estranha em seus objetivos de homenagear uma cientista que merece realmente todos os louros. Cá para nós, se não fosse ela a fazer essas descobertas, seria outro cientista a fazê-las e a radiação, em suas benesses e malefícios, ainda existiria entre nós. Ou seja, o avanço científico da virada do século XIX para o XX era um fenômeno de ordem social e não individual.
Dessa forma, “Radioactive” até consegue fazer uma bela homenagem a uma cientista que deve ser reconhecida nos dias de hoje, mas fez isso com um estranho gosto de cabo de guarda-chuva radioativo na boca.