Batata Movies – O Apartamento. Teatro E Trauma.

Cartaz do Filme

O cineasta iraniano Asghar Farhadi, que ganhou o Oscar de Melhor Filme estrangeiro com o ótimo “A Separação”, está de volta. Ele dirige e assina o roteiro do não menos ótimo “O Apartamento”, um filme que mexe com o público até o íntimo de sua alma. Um daqueles filmes do que o cinema iraniano tem de melhor, e que é muito mal compreendido por algumas pessoas que estão por aí. Ah, e antes que eu me esqueça, “O Apartamento” ganhou os seguintes prêmios: melhor ator, para Shahab Hosseini e melhor roteiro, para Asghar Farhadi, tudo isso em Cannes em 2016. E foi indicado ao Globo de Ouro deste ano para melhor filme estrangeiro, além de ter sido nomeado para a Palma de Ouro em Cannes ano passado.

Emad, um pacato professor…

A história fala de um casal, Emad (interpretado por Shahab Hosseini) e Rana (interpretada por Taraneh Alidoosti), que precisa fazer uma mudança às pressas de seu apartamento depois que uma obra ao lado do prédio provoca rachaduras que podem fazer o edifício desabar (!). O casal pertence a um grupo de teatro e um de seus amigos providencia um apartamento para Emad e Rana. A antiga inquilina, porém, tinha deixado suas coisas trancadas num quarto do apartamento, e foi decidido arrombar o quarto, deixando as coisas da moça no terraço, o que a deixou muito revoltada. Mas esse era apenas o menor dos problemas, pois a antiga inquilina recebia homens no apartamento e Rana acabou sendo atacada por um deles, depois de ter aberto a portaria do prédio pelo interfone, por pensar que era seu marido. Emad, um pacato professor e ator de teatro, vai então começar uma investigação por conta própria para descobrir quem foi que atacou sua esposa, com o agravante de que Rana ficou traumatizada e não quer ficar mais sozinha, e ainda com todo o peso da visão de mundo da sociedade islâmica, que não conseguia entender como Rana deixou um homem desconhecido entrar em sua casa.

Rana, uma mulher que sofre um forte trauma

Farhadi conseguiu escrever mais um roteiro brilhante e, dessa vez, até relativizando a alta religiosidade do Irã, já que havia algumas críticas veladas aos paradigmas e convenções impostos pela religiosidade, mas também o pensamento religioso não foi criticado de todo, pois Rana implorou a Emad que ele não tomasse certa atitude e percebemos como estava implícito ali que essa atitude ia claramente contra uma convicção religiosa. Havia pouca discussão em questões religiosas (“A Separação” teve um conteúdo maior nisso), mas elas apareciam, sobretudo, nas entrelinhas.

A tragédia de Rana implodia paulatinamente seu casamento. E isso mesmo num casal aparentemente esclarecido, que desempenhava um ofício transgressor como o teatro, o que mostra como o peso de certas tradições pode deixar qualquer um vulnerável ao conservadorismo, por mais progressistas que sejam suas mentes. Esse é um outro exemplo de como o discurso tradicionalista estava no filme, embora ele não aparecesse explicitamente.

A parte progressista da história ficou na encenação do teatro. Mostrar todo esse meio de manifestação artística é algo que eu não me lembro de ter visto no cinema iraniano, onde uma das atrizes aparecia muito bem maquiada e elegantemente vestida, com uma boca vermelhíssima de batom e um vestido igualmente vermelho. Ah, sim, e um chapéu estrategicamente colocado na cabeça para não despertar escândalos de uma cabeça nua. É de se notar que, em contrapartida, a maquiagem colocada em Rana para a peça, ao contrário de embelezá-la, a envelhecia, como se o diretor quisesse dizer que a maquiagem no teatro não é algo para se despudorar as mulheres, mas apenas um recurso para construir uma personagem.

O diretor Asghard Farhadi (centro) rodeado por Shahab Hosseini e Taraneh Alidoosti. Mais um filme iraniano de muito sucesso!!!

Infelizmente, os “spoilers” não me deixam falar mais do filme, mas sua melhor parte está em seu desfecho, que nos dá margem para uma grande reflexão sobre a condição humana. Só uma dica rápida: essa reflexão nos coloca a questão de até onde abrimos ou não mão das convenções sociais a que estamos impostos em prol de um comportamento mais humano e solidário, sendo essa questão muito difícil de ter uma resposta única ou fácil.

Assim, “O Apartamento” é mais um filme imperdível do cinema iraniano e de Asghar Farhadi. Um filme que ainda critica o conservadorismo da religiosidade muçulmana mas que também sabe reconhecer virtudes nessa religiosidade. E um filme que fala, acima de tudo, do que estamos dispostos a ceder para sermos mais humanos. Não deixem de ver essa excelente película. E não deixe de ver o trailer abaixo.

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