Em meus tempos de infância, havia um programa de TV à tarde na Rede Bandeirantes cujo cenário reproduzia uma sala de uma casa muito elegante, onde uma senhora muito bem vestida falava com você de forma muito simples e direta, sempre abordando uma temática qualquer do cotidiano. Lembro-me que, a primeira vez que ela me chamou a atenção de verdade foi quando falou sobre o assunto das pessoas que perdiam os seus bichinhos de estimação e ofereciam uma pequena recompensa em dinheiro para quem os achassem. A elegante senhora ficava indignada com aqueles que, ao encontrarem os bichinhos perdidos e entregarem aos seus donos faziam questão da tal recompensa e não o faziam com a pura intenção de devolver um ente querido à família que sofria pela sua ausência, aliviando a sua dor. Esse pensamento, que pode parecer altamente simplório nos dias de hoje, era apenas um dos temas de um programa vespertino de TV, cujo principal público da época era o das donas de casa (algo que também não parece ser mais uma constante nos dias de hoje). E quem era a tal senhora bem vestida que conduzia esse programa? Seu nome era Edna Savaget.
E agora, para homenageá-la e para que as novas gerações a conheçam, foi lançado há alguns meses o bom documentário “Silêncio no Estúdio”, de Emilia Silveira, onde pudemos ver a trajetória de Savaget numa riqueza de detalhes. Mesclando imagens de arquivo de seus programas, filmagens, pessoais, muitas fotos e entrevistas de figuras como Artur Xexéo e o Boni, da Rede Globo, “Silêncio no Estúdio” consegue mostrar Savaget de uma forma que, a princípio, não notamos em toda a sua plenitude, pois sempre nos fica o estereótipo de que o programa feito para a tarde e para um público de donas de casa enfocado em variedades parece ser uma coisa menor, uma espécie de tapa-buraco na programação. Entretanto, Savaget não se encaixava de forma nenhuma nesse estereótipo, pois sua mente era de uma erudição inigualável, sempre lendo e, principalmente, escrevendo muito, desde romances, passando por poesias e chegando até a colunas de jornal. O jeito com que ela se dirigia ao público, comentando todo o tipo de coisa, de forma muito corajosa e direta, lhe trouxe alguns problemas, por exemplo, com a censura da ditadura militar.
É notável perceber que seu programa era um convite para a reflexão, justamente num veículo de comunicação – a TV – que foi concebido aqui no Brasil inteiramente para a função de entretenimento, com o objetivo de alienar e manipular as massas. Ela era uma apresentadora, por exemplo, que entrevistava escritores que falavam de seus lançamentos literários, levando pela primeira vez na TV a menção de nomes da literatura latino-americana como Gabriel Garcia Marquez e Jose Luis Borges. Savaget também abordava termas espinhosos para os mais conservadores, como uma nova ideia para a relação homem-mulher no casamento, que não se ancorasse em parâmetros determinados pela tradição, discutindo com muita coragem o papel da mulher nas décadas de 60, 70 e 80. Desafiando todas as convenções da época, ela apresentava em seu programa ao vivo sua maquiadora, uma transex, em dias de repressão latentes. Sincera, quando era demitida de uma emissora de TV ou se demitia, ela anunciava isso no ar e ao vivo, para a perplexidade geral. Mas, apesar de toda a sua vivacidade, Savaget também era muito sensível e, volta e meia, tinha crises de depressão. Todos esses elementos são contados com muita simplicidade nesse filme que faz a gente se apaixonar por Savaget por ela mesma, pelo que simplesmente ela é. O único problema que incomodou um pouco no filme foi no que se refere às entrevistas do documentário, pois optou-se por fazer um cenário muito escuro, com muitas molduras entulhadas num canto. A gente até entende a proposta estética da coisa, mas um primeiro olhar mais despreocupado dá a impressão de que as entrevistas foram feitas num depósito de coisas velhas, indo totalmente contra a grande vivacidade da homenageada pelo documentário. Mas isso não diminui a qualidade do resgate de Savaget e de sua trajetória pelo filme.
Assim, “Silêncio no Estúdio” (onde o título desse filme é o mesmo de um dos livros escritos por Savaget) é um grande documentário que fala da trajetória de uma mulher notável que deu qualidade intelectual a um meio de comunicação visto por alguns como extremamente alienante, que é a televisão. A personalidade dessa senhora nos cativa instantaneamente e fica a vontade de ter aproveitado melhor aquele cotidiano longínquo de seus programas que a minha infância não os fez desfrutar direito. Uma pena.