Dando sequência à análise de episódios de “Jornada nas Estrelas, vamos falar do primeiro episódio da série, o piloto intitulado “The Cage”.
A Enterprise, sobre o comando do capitão Christopher Pike, atravessa uma onda de rádio proveniente do Sistema Talos, com um antigo sinal de socorro. O sinal vem da SS Columbia, uma nave que desapareceu há dezoito anos. O capitão prefere manter o curso para Veja para levar seus feridos, já que não há indícios de sobreviventes. A decisão do capitão de não fazer o resgate deixa a tripulação da ponte estupefata. O capitão sai da ponte e passa, nos corredores, por um casal que parece mais estar indo à praia, em trajes civis (indício de que há militares e civis na nave). Nos seus aposentos, Pike chama o Dr. Boyce, que concorda com sua prioridade de ir a Veja levar os feridos e lhe oferece um Martini. Pike diz que está cansado das responsabilidades de capitão e pensa em aposentadoria. O Dr. Boyce diz claramente que se Pike deixar essa vida, corre risco de definhar. Spock entra em contato e diz que foram encontrados sinais de vida em Talos. Há 11 sobreviventes, num planeta com atmosfera de oxigênio e disponibilidade de água e alimentos. Pike decide mudar o curso para Talos em dobra sete. Uma ordenança quase se choca com Pike e este resmunga que não está acostumado com mulheres na ponte. A tenente (interpretada por Majel Barrett) olha para ele de forma surpresa e Pike pede desculpas, dizendo que com ela é diferente, o que leva a outro olhar surpreso da tenente. Aqui a gente tem que fazer um parênteses. Estamos falando de um produto cultural da segunda metade da década de sessenta do século passado, quando passava-se muito longe de qualquer coisa a discussão sobre empoderamento feminino. Mesmo que aos nossos olhos do século 21, a postura de Pike tenha sido extremamente machista para uma pessoa do século 23, deve-se ficar registrado aqui a forma perplexa como a personagem de Barrett olha para seu capitão, mostrando a sua indignação com o machismo do capitão. E temos a presença de duas mulheres na ponte de comando, algo que não acontecia em outras séries da época, como em “Viagem Ao Fundo do Mar”, com um submarino repleto de varões. Essa postura da tenente é ainda mais notável quando sabemos do comportamento de algumas mulheres que assistiram esse piloto da série, pois elas reclamaram de uma forma bem machista da postura da tenente, ao bom estilo “quem essa mulher pensa que é para estar aí nesse posto?”. Assim, podemos dizer que Roddenberry já nos primeiros momentos de “Jornada nas Estrelas” diz ao que vem a série, que é discutir sobre a questão da diversidade e da barreira dos preconceitos.
A Enterprise chega ao planeta e Pike escolhe seu grupo de descida, não escolhendo a tenente, que é a “Número 1”, ou seja a Primeira Oficial da nave. Nossa tenente fica um pouco chateada de não ir, mas Pike dá um argumento convincente do tipo “como não sabemos direito o que há lá, precisamos de oficiais experientes na nave”. Ou seja, houve uma preocupação de se justificar o fato de que a tenente foi preterida: ela é uma oficial experiente e ficará responsável pela nave na ausência do capitão. Pela primeira vez vemos o teletransporte sendo usado e o impressionante cenário de Talos IV, que, mesmo sendo uma espécie de pintura, é de grande realismo para um episódio piloto. Spock e Pike encontram a plantinha azul que emite sons e que se silencia quando se pega em suas folhas. Aqui, o Spock dá o seu conhecido sorriso, já que o personagem ainda não estava suficientemente construído em toda a sua lógica vulcana. É encontrado um acampamento somente com homens idosos, os sobreviventes da SS Columbia. Pike se apresenta dizendo que é o capitão da “United Space Ship Enterprise”, fazendo com que a gente saiba o que é o U.S.S. da nave. Aparece Vina, que teria nascido logo depois do acidente e os pais morreram. Enquanto isso, nas profundezas do planeta, os talosianos assistem tudo. Vina diz que Pike é um excelente espécime e os idosos pedem desculpas pelo linguajar demasiadamente científico. Vina diz que é hora de mostrar o segredo deles à tripulação da Enterprise. Vina leva Pike para a entrada de uma caverna e ele é imobilizado e capturado pelos talosianos. Os idosos desaparecem e a tripulação tenta abrir a caverna com os phasers, o que não acontece. Spock comunica à Numero 1 que não há sobreviventes e que perderam o capitão, que caiu numa armadilha.
Pike acorda na jaula. Ele tenta fugir mas não consegue. Há outras jaulas com outras espécies. Os talosianos chegam e Pike se apresenta, dizendo que é de um sistema solar do outro lado da galáxia e que suas intenções são pacíficas. Os talosianos se comunicam por telepatia e discorrem sobre Pike sem falar com ele. Pike escuta o que falam. E fica especialmente preocupado quando eles citam que logo começará a experiência.
Na nave, vemos a primeira reunião da tripulação na franquia. Foi dito que os talosianos têm a capacidade de criar ilusões e que têm um cérebro três vezes maior que o humano, podendo ser uma ameaça caso a nave ataque o planeta. Mas o capitão está encarcerado por eles. A Número 1 decide atacar Talos IV.
Os talosianos começam o teste, dando a Pike algo importante para ele proteger. Ele acaba em Rigel VII com Vina pedindo ajuda. Pike logo percebe que tudo aquilo é uma ilusão. Uma criatura surge e Pike luta contra ela, mesmo sabendo que tudo é de mentirinha. Pike mata o ser e retorna para a cela, agora acompanhado de Vina. A moça diz para Pike que ele pode ter o que quiser, mas Pike só quer saber de como se aproximar dos talosianos e não deixar mais que os mesmos usem sua mente contra ele.
Do lado de fora do túnel, a tripulação usa uma arma mais sofisticada para abrir a porta, entretanto nada acontece. O doutor diz que tudo o que estão vendo pode não passar de uma simples ilusão e a montanha onde está a caverna já pode até ter sido destruída.
Vina começa a responder algumas perguntas de Pike. Os talosianos foram para as profundezas, pois houve uma guerra e acabaram se desenvolvendo mentalmente, criando um mundo aparente e não mais se preocupando em desenvolver coisas para o mundo real, capturando alienígenas para estudar suas vidas e experiências reais. Pike está na dúvida de se Vina é real e ela afirma que sim. Nisso, entra uma talosiana que retira Vina da jaula e a leva para o castigo por ter falado demais.
Um alimento é dado para Pike. A talosiana se comunica com ele dizendo isso e ele pergunta o que acontecerá se ele se negar a comer. A talosiana lhe dá um castigo e ele tem a ilusão de estar sendo queimado. A talosiana diz que ele precisa consumir o alimento. Pike então pergunta por que a talosiana não lhe dá uma ilusão de fome. Isso quer dizer que os talosianos têm limites em sua força telepática? A talosiana ameaça Pike, dizendo que há coisas mais desagradáveis na sua cabeça para ela transformar em castig. Pike consome o alimento e faz menção de avançar na talosiana que se assusta. Pike chega à conclusão de que a talosiana não pode ler sua mente o tempo todo. Pensamentos primitivos parecem não poder ser lidos. A talosiana fala que Vina é real e que ela foi a única sobrevivente da sua espécie.. Pike pergunta por que é importante que ele sinta atração por Vina. Seria para criar uma comunidade humana? E por que Vina é castigada se ele é que desobedece? Sarcasticamente, a talosiana fala dos sentimentos de Pike: proteção emocional e simpatia. E sai dizendo: “Excelente”. Pike vai para outra ilusão onde está fazendo um piquenique com Vina na sua casa, onde até seu cavalo aparece. Pike se lembra então da conversa que teve com o doutor, de que queria abandonar tudo e ter uma vida mais prosaica, afastada da realidade. E, agora que ele estava naquela encenação, entendia a resposta do doutor de que abandonar a realidade era um passo para definhar. Pike conversa com Vina para buscar uma saída para aquelas ilusões e ela confirma a tese de que os talosianos não lêem a mente com pensamentos primitivos. Mas isso é somente por um tempo e depois eles assumem o controle de tudo novamente, o que tornou Vina uma escrava. Os dois acabam se declarando um para o outro e os talosianos percebem que os humanos escondem os sonhos até de si mesmos. O ambiente é mudado e Vina agora é uma sensual escrava verde de Órion que se apresenta para Pike e outros homens. Pike fica incomodado com a visão e se afasta, mas Vina vai atrás dele para seduzi-lo.
Na Enterprise, uma equipe de descida se prepara para se teletransportar. Mas o teletransporte somente funciona para a Número 1 e a ordenança. Aqui temos o famoso gesto de Spock, onde ele grita: “as mulheres!”. A Número 1 e a ordenança se materializam na jaula e Vina, que estava quase seduzindo o capitão, olha para as duas mulheres de forma atravessada, que não se abalam. A Número 1 disse que Vina estava na tripulação da SS Columbia, insinuando então que ela seria mais velha do que aparenta. Aparece uma talosiana, que diz a Pike para escolher a mulher que quiser. A Número 1 é muito inteligente, o que poderia dar filhos inteligentes, sem falar que a Número 1 tem fantasias com o capitão, o que a constrange. Já a ordenança é jovem e com grande libido. Essa forma seca de querer arranjar um casamento para duas cobaias de laboratório por parte dos talosianos é emblemática e é uma critica velada aos casamentos arranjados, mais frequentes na década de 60 do que hoje. Mas Pike nutre sua cabeça com pensamentos agressivos para ficar fora do alcance da telepatia dos talosianos, ameaçando-os com bastante raiva. A talosiana castiga Pike e diz para ter os pensamentos certos, para cooperar.
Spock ia partir com a nave, pensando na tripulação, etc., etc. (algo muito estranho deixar o capitão, a Numero 1 e a ordenança para trás), mas os controles não respondem. Em Talos IV, a talosiana tenta pegar as armas da tripulação na jaula e Pike consegue prendê-la, estrangulando-a. Esta diz que destruirá a Enterprise se Pike não largar seu pescoço. Os talosianos invadem telepaticamente a Enterprise e começam a coletar os dados do computador da nave. Em Talos IV, Pike entrega a refém para a Número 1 e tenta atirar com o phaser, aparentemente descarregado, no vidro da cela. Achando que é uma ilusão, ele aponta o phaser para a cabeça da talosiana e o buraco no vidro aparece, com a ilusão desaparecendo. Todos vão para a superfície e a entrada da caverna também está toda destruída, agora que as ilusões acabaram. A talosiana diz que eles não tem para onde ir e que construirão uma civilização na superfície sob a orientação dos talosianos. A Número 1 toma mais uma atitude e coloca seu phaser para sobrecarregar e explodir, pois nenhum humano deve viver como escravo. Outros talosianos chegam e eles chegam à conclusão que a raça humana é muito perigosa pois, no cativeiro, mesmo com tudo que lhes agrade, ainda sim é uma raça muito violenta pois não tolera ficar presa. A Número 1 já tinha desativado o phaser quando os outros talosianos chegaram. Vina diz que a tripulação da Enterprise está livre para ir embora. Pike fica revoltado, pois foi aprisionado junto com a ordenança e a Número 1 e não recebeu sequer um pedido de desculpas. Os talosianos disseram que os humanos eram sua última esperança, pois eram mais adaptáveis. Pike sugeriu uma colaboração mútua, mas os talosianos não quiseram, pois acreditavam que quando os humanos aprendessem as técnicas de ilusão dos talosianos, eles se destruiriam.
A Enterprise tem de novo a sua energia. A ordenança e a Número 1 voltam. Pike fica na superfície e vê a verdadeira aparência de Vina. Muito ferida na queda da SS Columbia, a moça foi reconstruída pelos talosianos, mas eles não tinham ideia das verdadeiras formas humanas e Vina ficou com uma aparência terrível. Mas Vina foi presenteada pelos talosianos com sua bela aparência e com a ilusão de um Pike somente para ela. Pike volta para a Enterprise a tempo de ainda ter a piada fnal na ponte, onde a ordenança pergunta quem teria sido a Eva dele. A ordenança é repreendida pela Número 1 e o doutor faz uma piada com o capitão. Fim do episódio.
Esse episódio piloto de Jornada nas Estrelas, onde tudo começou enquanto série e franquia, suscita algumas discussões. Em primeiro lugar, é curioso perceber como um tema tão caro à ciência, como o ato da observação e experimentação, é tratado no episódio. A espécie talosiana lança mão da ciência para estudar espécies alienígenas como cobaias, privando-as de sua liberdade. O ato de experimentar e observar, ferramenta básica do método científico, parece, num primeiro momento, algo maniqueísta, já que é usado como um artifício para aprisionar outros povos. Por um outro lado, Christopher Pike, enquanto prisioneiro dos talosianos, também lança mão do expediente da experimentação e da observação para entender mais o povo que o aprisiona e buscar uma forma de se libertar da jaula. Assim, se o método científico aprisiona, ele também pode libertar. Ou seja, o método científico é nada mais, nada menos do que uma ferramenta. O que importa é o uso que se faz dele. Mais ou menos a mesma coisa que falamos hoje da internet.
Um segundo ponto, e esse é muito curioso, é a tensão entre utopia e distopia já no episódio piloto. Os talosianos, uma espécie muito desenvolvida (seu cérebro era três vezes maior que o dos humanos) vivia nas profundezas em função de uma guerra do passado. Por estarem numa situação de clausura, desenvolveram demais a mente e passaram a fazer experiências com outras espécies alienígenas, criando uma distração para os dias de confinamento, ao invés de retomarem a vida e reconstruírem sua civilização. Tal situação os impossibilitou de reconstruírem sua civilização por si mesmos e a dependerem de mão-de-obra alienígena para isso, onde os humanos eram a melhor opção. Daí a necessidade de Pike e Vina se unir para promover a reprodução e formar essa mão-de-obra. Uma vez que Pike entende essa condição de fraqueza dos talosianos, ele oferece uma ajuda mútua que é rechaçada pelos talosianos, pois os humanos se destruiriam no momento em que eles aprendessem as técnicas telepáticas dos talosianos. Assim, se temos uma condição mais distópica atribuída aos talosianos no início do episódio, com a situação da guerra passada e do aprisionamento de espécies, ao final do episódio, os talosianos e humanos chegam ao entendimento, mais utópico, com os primeiros reconhecendo que a liberdade é muito importante para os segundos e com os humanos oferecendo ajuda aos talosianos, mesmo tendo sido aprisionados. Só ficou mal contado como Vina e a ilusão de Pike poderiam ser úteis para os talosianos reconstruírem sua civilização, esse sim um furo de roteiro.
O terceiro ponto, que já foi mencionado acima, é o da questão de gênero, corajosamente abordada para a época que o episódio foi feito (1964), pois a posição da mulher naquela sociedade era altamente periférica. E aí, temos uma ponte onde duas mulheres trabalham, à despeito das observações machistas do capitão. O papel de Majel Barrett nesse episódio é de suma importância, pois ela era a Número 1 da nave, ou seja, era a capitã na ausência do capitão, e deu umas três olhadas perplexas para seu superior quando ele estava em arroubos de machismo. Ou seja, uma reação sutil que acaba sendo muito mais contundente do que se ela fosse mais direta. Já a nossa ordenança, que teria o papel mais vulnerável para o machismo do capitão, usava com inteligência o argumento de que precisava estar na ponte, já que o próprio capitão havia lhe dado ordens receber dela relatórios periodicamente. Foi especial a forma sarcástica dela entregar o relatório para o capitão no final do episódio. E mais delicioso ainda o atrevimento dela ao perguntar para o capitão, na ponte, perante todos os varões e superiores, quem seria escolhido por ele para ser a sua Eva. Lembremos que estamos em 1964, onde séries como a já citada “Viagem Ao Fundo do Mar”, não tinham mulheres em postos militares, e que as próprias mulheres telespectadoras achavam a Número 1 muito petulante por estar num posto geralmente destinado a um homem. Assim, Roddenberry já entregava seu cartão de visitas de abordar temas polêmicos para sua época no piloto da série. O leitor mais atento pode perguntar: e Vina? Ela também foi uma personagem ativa, jogando em duas frentes. Num momento, ela lançava mão de sua ligação com os talosianos para seduzir Pike, noutra hora, ela se aliava a Pike para buscar fugir da jaula, sendo uma personagem mais complexa que o da lourinha indefesa a ser salva pelo varão.
Sabemos que esse piloto não foi aprovado num primeiro momento, talvez por ser desafiador demais na época, talvez pela aparência demoníaca de Spock, que muito incomodou os WASPs de plantão. Mas “The Cage” ficou imortalizado como a obra seminal de “Jornada nas Estrelas” e um documento definitivo de uma franquia que faria muito sucesso nas cinco décadas seguintes.