Introdução.
A série Jornada nas Estrelas é conhecida por mostrar uma sociedade utópica do futuro onde todos os problemas enfrentados pela humanidade foram praticamente resolvidos e a humanidade progrediu mostrando o seu melhor. É verdade que, dentro das séries de Jornada nas Estrelas, a distopia apareceu em algumas séries, mas o espírito inicial sempre foi a utopia. Ainda, em Jornada nas Estrelas, além de temas pertinentes à ciência, referências de ordem histórica, social e política também se faziam presentes nos episódios e séries, nesses mais de cinquenta anos de franquia. Um dos temas abordados foi o fascismo, talvez um dos regimes mais cruéis que a humanidade forjou. Vamos aqui conversar um pouco sobre essa presença do fascismo em Jornada nas Estrelas, analisando, basicamente, dois momentos da franquia. O primeiro deles foi o episódio “Padrões de Força”, da série clássica, realizado apenas vinte e três anos depois do término da Segunda Guerra Mundial. O outro episódio, “Tempestade Temporal”, um episódio duplo de Jornada nas Estrelas Enterprise, foi realizado cinquenta e nove anos depois do término da Segunda Guerra Mundial. Para podermos analisar os episódios propriamente ditos à luz do que foi o fascismo, será feita aqui uma breve digressão do que foi o fascismo, as condições que levaram ao seu surgimento e como ele se processou na Europa, sobretudo nos casos italiano, alemão e espanhol. Em seguida, analisaremos o episódio “Padrões de Força” e, logo a seguir, o episódio “Tempestade Temporal”. Ao final, apresentaremos as conclusões dessas análises.
Uma Breve História do Fascismo
Ao fim da Primeira Guerra Mundial, a Europa, destruída, vivia uma violenta crise econômica, onde houve uma pequena recuperação ao longo da década de 20. Entretanto, em 1929, viria a Grande Depressão, que agravou novamente a situação. Os grupos políticos socialistas culpavam, em 1918, a burguesia pela crise, já que o processo imperialista surgido ainda no século XIX, já tinha ocorrido em virtude de uma crise econômica de superprodução que foi sanada quando as grandes potências europeias se voltaram para a África, Ásia e América Latina para explorar suas fontes de mão-de-obra, de mercados consumidores e de matérias-primas. O desentendimento entre as potências européias nessa exploração imperialista foi um dos fatores (senão o mais importante) que levaram à Primeira Guerra Mundial. Tudo isso em virtude de uma burguesia que atuava livremente para enriquecer, sem qualquer controle do Estado. Ao chamar a atenção para esses fatos, os grupos socialistas começaram a receber apoios de operários e intelectuais, ganhando mais e mais deputados nas eleições dos países europeus no pós-guerra. Os grandes empresários e patrões temiam a explosão de revoluções socialistas pela Europa. A única forma de deter isso seria acabando com os governos democráticos e impondo uma ditadura que assegurasse o capitalismo e reprimisse os socialistas. A classe média e a pequena burguesia percebiam que seus padrões de vida caíam e acreditavam que as greves de operários aumentavam a inflação (alta dos preços). Assim, a classe média e a pequena burguesia também começaram a apoiar uma alternativa mais autoritária de governo. Dentre os próprios operários e camponeses havia grupos que queriam um governo que “restaurasse a ordem”. Assim, se os grupos socialistas ganhavam deputados, as requisições de um governo forte também deram força aos grupos de extrema-direita. Eles defendiam a instalação de um regime autoritário que “combatesse a baderna, a corrupção dos políticos e os movimentos grevistas de esquerda”. Era necessária a presença de um líder incontestável. A democracia era considerada um regime fraco e corrupto que permitia ascensão de grupos de esquerda ao poder. Tais ideias estavam ligadas a um movimento político chamado fascismo, cuja expressão vem da palavra fascio, que era um machado que os juízes da Roma Antiga possuíam e que era uma espécie de símbolo de poder.
Apesar de se declarar revolucionário, o fascismo defendia o capitalismo, ou seja, o regime fascista é uma ditadura favorável à burguesia. Apesar da forte presença do Estado, a maioria das empresas continua sendo de propriedade dos burgueses. A democracia acaba, não havendo eleições, greves, liberdade de imprensa e os críticos do governo sofrem prisões. O único partido aceito é o fascista e os sindicatos devem obedecer incontestavelmente ao governo. Dentre as principais ideias fascistas, podemos citar: anticomunismo (os fascistas abominavam a igualdade social proposta pelos socialistas, pois acreditavam em povos superiores e inferiores; Adolf Hitler, em seu livro Mein Kampf – Minha Luta – dizia que devia haver duas categorias de cidadãos: os que haviam prestado serviço militar, que pertenciam à uma casta superior e que teriam mais direitos, e os demais civis que, por não terem prestado o serviço militar, seriam de uma casta inferior com menos direitos); antiliberalismo (o regime democrático é fraco e corrupto, dominado pelos enganadores do povo; já os fascistas defendem um regime ditatorial); totalitarismo (o indivíduo deve obedecer ao Estado sem contestação, pois, caso ele conteste o governo, ele é um inimigo da pátria; o Estado controla todas as atividades, mas a propriedade privada e o capitalismo continuam existindo); militarismo (a guerra é vista como a atividade mais nobre do Homem, onde o mais forte deve vencer o mais fraco e o diálogo é considerado uma atividade dos mais fracos); xenofobia (o fascismo é ultranacionalista, onde o governo deve controlar os investimentos estrangeiros no país, e é xenófobo, ou seja, odeia tudo aquilo que é estrangeiro, considerando as pessoas de outros países como inimigas da pátria e inferiores); racismo (ocorreu mais na Alemanha, dentro do regime nazista, onde havia uma “superioridade da raça branca” sobre as demais, consideradas inferiores, devendo ser eliminadas por contaminar o sangue puro ariano; as mulheres deviam ser submissas); culto ao chefe supremo da nação (o líder da nação é uma espécie de pai simbólico que protege a nação com toda a sua autoridade, sendo praticamente cultuado como um Deus); irracionalismo (os fascistas acreditavam que o racionalismo era limitado, e a força bruta é o mais importante, onde a verdade é aquilo que o mais forte consegue impor; por isso mesmo, os fascistas davam grande importância à propaganda política, onde o Ministro da Propaganda Nazista, Joseph Goebbels, dizia que “Uma mentira falada mil vezes se tornava uma verdade” e, por serem críticos do racionalismo, eram também críticos do movimento iluminista, embora os nazistas tenham usado práticas bem racionais para a matança em campos de extermínio).
O fascismo inicialmente se desenvolveu na Itália, que, logo após a guerra, estava em profunda crise econômica, a um passo de uma revolução socialista. Surgiu, então, o Partido Fascista, inicialmente um agregado de ex-soldados, desempregados e policiais que reprimiam com violência operários grevistas, mediante pagamento de empresários. Com o tempo, esse grupo se tornou um partido político com ideias próprias, embora não tivesse parado a violência contra seus inimigos. Em 1922, com o apoio da burguesia, os “Camisas Negras” fascistas fizeram a marcha sobre Roma, exigindo que o Rei da Itália nomeasse o líder fascista Benito Mussolini como Primeiro-Ministro. Isso acabou acontecendo e Mussolini convocou eleições fraudulentas que inundaram o Parlamento Italiano de fascistas. Quem se opunha a isso era assassinado. É importante notar que isso aconteceu bem antes da Crise de 1929. Foi Mussolini quem cedeu o Vaticano à Igreja Católica no Tratado de Latrão de 1929.
O fascismo também se desenvolveu na Alemanha, sob o nome de nacional-socialismo, cuja abreviação, o nazismo, ficou mais conhecida. Apesar de ser um movimento de extrema-direita, o nazismo adotou o termo socialismo por ser muito popular na época. Ao fim da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha criou uma República Democrática, conhecida como República de Weimar, abandonando o Império após a abdicação do Kaiser Guilherme II. O termo Weimar foi adotado pois, em virtude das sérias turbulências políticas, a constituição não foi escrita em Berlim, mas na cidade próxima de Weimar. Os nazistas viriam a tomar o poder somente em 1933, e todo o período da República (1918-1933) foi de extremas dificuldades, onde os alemães passaram por uma inflação violentíssima em 1923, lutas entre grupos de extrema esquerda e extrema direita, onde os primeiros eram severamente punidos pela justiça, enquanto que havia grande impunidade para o segundo grupo (Hitler tentou dar um golpe e ficou menos de um ano na cadeia), além de assassinatos de políticos que queriam um melhor relacionamento com os países europeus que impunham severas restrições aos alemães pelo Tratado de Versalhes.
Adolf Hitler era um ex-sargento da Primeira Guerra Mundial que queria ser artista e foi reprovado duas vezes na Academia de Artes de Viena (Hitler era austríaco, não alemão). Desempregado, começou a ler publicações antissemitas e foi contratado como olheiro da polícia para se infiltrar em grupos de esquerda e fornecer informações. Numa de suas missões, Hitler se infiltrou no Partido dos Trabalhadores Alemães, como sétimo membro. Hitler começou a manipular os membros do partido com suas ideias e o fez crescer, transformando-o mais tarde no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Hitler tinha excelente oratória e acusava os judeus e comunistas de desgraçarem o país. Ele falava em combater a desordem e recuperar o orgulho de ser alemão. Tais palavras eram de grande impacto numa sociedade empobrecida e faminta. Com o tempo, os nazistas conseguiram fazer deputados no parlamento, mas com a crise de 1929, onde o desemprego chegou a 44% da população economicamente ativa, Hitler percebeu que não precisaria mais dar um golpe para chegar ao poder. Com as forças antinazistas divididas (os socialistas e social-democratas), os nazistas, que tinham apoio dos militares e dos empresários, estavam unidos, e aproveitaram uma brecha no sistema de poder da Alemanha para poder chegar ao poder. Ou seja, os nazistas chegaram ao poder pelas vias legais, ao contrário do que havia acontecido na Itália. Ao subirem ao poder, a primeira medida dos nazistas foi botar fogo no parlamento alemão e acusar os socialistas, sendo esse o pretexto para os partidos políticos serem fechados e a policia secreta (Gestapo) ser colocada nas ruas. Hitler contornou a crise econômica fazendo um plano econômico semelhante ao New Deal dos Estados Unidos, mas com a ajuda da iniciativa privada ao invés dos investimentos estatais que Roosevelt fez nos Estados Unidos.
Outro local onde o fascismo se instalou na Europa de forma muito pronunciada foi na Espanha, depois de uma guerra civil de três anos (1936-1939). Houve uma eleição disputada pelos militares fascistas espanhóis (liderados pelo General Francisco Franco) e as forças antifascistas democráticas e republicanas, que ganharam as eleições. Os fascistas não aceitaram a derrota e a guerra civil se instaurou. O governo republicano reagiu à tentativa de golpe e armou a população. Os republicanos também receberam ajuda de socialistas, social-democratas, anarquistas, da União Soviética e de brigadas internacionais. Já os fascistas receberam de Hitler a ajuda da Luftwaffe (a Força Aérea Nazista), de Mussolini (que enviou tropas), dos empresários, dos grandes fazendeiros e da Igreja Católica, declaradamente anticomunista. Em 1939, os fascistas ganharam a guerra civil espanhola, que foi considerada uma espécie de ensaio para a Segunda Guerra Mundial, que também começaria naquele ano. Pablo Picasso retratou em seu mural “Guernica” todos os horrores do bombardeio nazista a essa cidade espanhola e hoje esse mural está na sede das Nações Unidas em Nova Iorque para que todos se lembrem dos horrores da guerra.
Jornada nas Estrelas, A Série Clássica: Padrões de Força (S02 Ep 21 – “Patterns Of Force”, escrito por John Meredith Lucas)
Falemos, agora, do primeiro episódio de Jornada nas Estrelas que abordou a questão do fascismo. Trata-se do vigésimo-primeiro episódio da segunda temporada da série clássica (The Original Series, mais conhecida como TOS), chamado “Padrões de Força” (“Patterns of Force”), escrito por John Meredith Lucas, exibido pela primeira vez em 16 de fevereiro de 1968, ou seja, apenas vinte e três anos depois do término da Segunda Guerra Mundial.
O plot do episódio é o seguinte. A Enterprise vai para um sistema planetário onde há dois planetas habitados: Ekos e Zeon. O primeiro planeta tem uma civilização belicosa, ao passo que o segundo planeta tem uma civilização pacífica e desenvolvida tecnologicamente, sem guerras há várias gerações. O historiador terráqueo John Gill foi enviado pela Federação como Observador Cultural, mas não deu mais qualquer sinal de vida e, agora, a Enterprise vai ao sistema para buscar saber o que aconteceu. Ekos lança uma ogiva nuclear contra a Enterprise, justamente o planeta que tem uma tecnologia menos avançada, sendo que a ogiva nuclear é mais avançada que as tecnologias dos dois planetas. Spock frisa que John Gill é um historiador que trabalha a História mais em torno da questão de causas e motivações do que em datas e eventos, ou seja, uma abordagem sobre a História que era uma novidade para a época em que a série era produzida. Ao descerem à superfície de Ekos, Kirk e Spock descobrem que há um Estado Nazista governando o planeta e que trata os zeons exatamente como os nazistas tratavam os judeus na época da Segunda Guerra Mundial, matando os zeons, linchando-os ou pisoteando-os (os próprios nomes dos personagens zeons lembram nomes de origem judaica: Davod, Isak, Abrom). Os nazistas, no transcorrer do episódio, na maioria das vezes apontavam as armas para alguém, sempre sob uma música militar de fundo (referência ao militarismo dos fascistas). Há todo um discurso de erradicação dos zeons do planeta Ekos, bem ao estilo da chamada “solução final” implementada pelos nazistas no momento em que os aliados passaram a estar em vantagem na guerra e, para que a situação de crimes de guerra dos campos de concentração não fosse descoberta, os nazistas passaram a focar no extermínio sistemático dos judeus para a sua erradicação total (embora devamos nos lembrar que os nazistas também exterminavam comunistas, homossexuais e ciganos). Os nazistas de Ekos se referiam aos zeons como “suínos” e, com a erradicação, os zeons “profanariam os ekosianos pela última vez”, numa clara alusão ao racismo nazista que à “raça pura” ariana, opunha o sangue contaminado dos judeus, que deviam ser eliminados para não contaminar o sangue puro dos arianos.
É interessante também perceber que havia uma tela de TV que fazia a propaganda nazista ekosiana, repetindo continuamente o discurso de ódio contra os zeons. Uma notícia chama a atenção: que os ekosianos haviam repelido um ataque zeon, destruindo a nave agressora, numa alusão ao ataque à Enterprise. Nesse momento, Kirk diz a Spock que ele parecia bem inteiro para quem foi destruído num ataque. Essa fina ironia contra a mentira da notícia ekosiana é uma clara referência às técnicas de propaganda de Joseph Goebbels e à sua famosa frase “uma mentira falada mil vezes torna-se uma verdade”.
E quem seria o “Führer” desse Estado Nazista Ekosiano? Seria o próprio John Gill, para a perplexidade de Kirk. Mais um mistério a se resolver aí. Por que um historiador consciente das atrocidades nazistas violaria a Primeira Diretriz e implementaria um regime nazista num planeta para onde ele foi apenas como um observador cultural?
É claro que nossos personagens protagonistas vão ter que agir para descobrir o que está acontecendo. E, para isso, eles vão precisar usar disfarces nazistas. Há duas passagens muito curiosas quanto a isso. Spock está disfarçado com um capacete nazista encobrindo estrategicamente suas orelhas vulcanas. Kirk, ao perceber o detalhe, diz que o capacete nazista cobre todos os pecados de Spock. Essa ironia muito provavelmente foi dirigia aos conservadores WASPs (sigla inglesa para branco, anglo-saxão e protestante) dos Estados Unidos que haviam reclamado que o personagem de Spock lembrava o demônio. Nada mais irônico que um disfarce nazista para encobrir os “pecados” da fisiologia vulcana de Spock, um disfarce cuja ideologia poderia muito bem estar em sintonia com a ideologia da direita conservadora estadunidense que tanto criticava Spock. Já Kirk conseguiu um uniforme de uma patente superior e mais bonito que o de Spock, ao que valeu o comentário do vulcano de que o capitão estaria um nazista bem convincente, o que provocou um olhar ressabiado de Kirk. Todo trekker de carteirinha sabe dos rompantes autoritários de Kirk para com sua tripulação e a piada foi bem oportuna aqui.
Quando Kirk e Spock são aprisionados, outros detalhes interessantes aparecem. Eles foram chicoteados e as marcas de chicoteamento em Spock eram todas verdes por causa de seu sangue. Já Kirk estava todo vermelho, mas as manchas pareciam ter sido feitas de batom. Um dos nazistas que mantinha os dois presos (e que ia se revelar uma espécie de agente zeon infiltrado) se chamava Eneg, que é “Gene” ao contrário. Uma coisa que incomoda aqui é uma certa arrogância com que Kirk se dirige aos nazistas, dizendo que só responderia as perguntas se ele pudesse falar diretamente com o Führer e uma certa passividade dos nazistas contra tal empáfia. Bom, ele é o herói da série, mas… Temos, ainda, a argumentação dada por Isak do motivo pelo qual os ekosianos odiavam os zeons. Ficou claro na fala de Isak que o ódio aos zeons era o que unificava os ekosianos, como se sua belicosidade dividisse os ekosianos em vários grupos. Quando pensamos na ideologia nazista baseada numa pureza de raça que justificasse as ações conquistadoras dos nazistas contra os inimigos de uma raça inferior, esse fator de uma raça ariana pura provavelmente também foi usado como um elemento aglutinador, já que a agressividade dos nazistas levava a divisões entre eles. Um caso emblemático disso é a “Noite das Facas Longas” onde cerca de duzentos membros das SAs foram massacrados. As SAs (Sturmabteilung, Destacamento Tempestade), eram forças paramilitares criadas em 1921 e que tinham como objetivo inicial proteger líderes nazistas em comícios e assembléias. Com o tempo, essa força passou a ter cerca de 4,5 milhões de integrantes, mais do que os cem mil soldados do exército alemão. Em 1934, as SAs eram lideradas por Ernst Röhm e eram vistas por Hitler como uma ameaça ao seu poder. Assim, o Führer ordenou o massacre de suas lideranças, desbaratando o movimento. As SAs seriam substituídas pela SS (ShutzStaffel, Tropas de Proteção), liderada por Heinrich Himmler e idealizada inicialmente por ele como última linha de defesa de Hitler, uma espécie de tropa de elite, que depois se tornou um importante braço armado nazista.
Outra característica muito curiosa do episódio é a visão que os zeons têm dos ekosianos. Como os zeons eram uma espécie pacífica que não tinha guerras há várias gerações, e os ekosianos eram belicosos, os zeons se sentiram no direito de tutelar os ekosianos e levar a “civilização” zeon para a “barbárie” ekosiana. Esse foi o mesmo discurso que motivou a invasão imperialista da Europa à África, Ásia e América Latina, na virada do século XIX para o XX. E o argumento de se levar a “civilização” para a “barbárie” muitas vezes se amparava no darwinismo social, que é uma interpretação equivocada da Teoria da Evolução das Espécies de Charles Darwin, e que colocava os europeus como raças humanas mais evoluídas e superiores às africanas e asiáticas, justificando as invasões europeias. Ou seja, os argumentos nazistas usados para justificar suas posturas agressivas e beligerantes na Segunda Guerra tinham origem no processo imperialista de décadas anteriores e em “Padrões de Força” são usadas ironicamente como uma justificativa da intervenção zeon no planeta Ekos, ou seja, levemos a civilização para os bárbaros. Isak lembra também que os ekosianos eram belicosos, mas não tão perversos. Isso aconteceria justamente com a chegada de John Gill ao planeta.
Mais uma alusão ao que acontecia no nazismo aparece quando Kirk, Spock e Isak se libertam da cela e vão procurar os comunicadores no laboratório. Eles passam por um soldado e Kirk diz que está levando o zeon para o laboratório para fazer experiências, numa clara referência às experiências de Joseph Mengele, principalmente com irmãos gêmeos, onde ele fazia as experiências genéticas mais terríveis com o irmão gêmeo mais fraco, ao melhor estilo de se usar uma cobaia humana. Todas as experiências que dessem certo com o gêmeo mais fraco eram aplicadas no gêmeo mais forte. Mengele também amputava membros de bebês para ver o seu poder de regeneração, assim como injetava corantes azuis nos olhos de crianças para verificar se a íris ficaria azul.
Na parte final do episódio, mais referências explicitas ao nazismo. Quando Kirk, Spock, Isak e a espiã Daras, tomada como herói nazista ekosiana, entram na chancelaria, o disfarce é uma espécie de equipe de filmagem onde são feitas tomadas da herói nacional Daras (impossível não se lembrar de Leni Riefensthal e seus filmes de propaganda). Há, também, o vice-führer, Melakon, talvez aqui uma espécie de Goebbels. A respeito de John Gill, este estava imóvel no local de seu discurso e aí surgiram as especulações: distanciamento semi-divino (como os líderes fascistas eram tratados), drogado ou psicose (sempre houve essa alegação de que os líderes fascistas eram psicopatas; mas fica aqui um questionamento: será que um fenômeno político como o fascismo, que surgiu em vários países de culturas bem diferentes, teria todos os seus líderes tomados como psicopatas? Tal hipótese não daria peso demais ao indivíduo para um fenômeno social?). De qualquer forma, Gill era drogado por Melakon no final das contas. Foi isso que Gill disse ao ser “reanimado” por McCoy para que Kirk pudesse conversar com o historiador e entender o que ocorria. E a opção pelo nazismo? Nas palavras de Gill, o planeta Ekos estava fragmentado e o modelo de Estado Nazista foi usado por ele, pois esse era o exemplo de estado mais eficiente. Spock concordou com isso, pois a Alemanha era um país abalado e falido que foi transformado numa potência pelo nazismo em poucos anos. Kirk rebateu dizendo que o Estado Nazista foi brutal, pervertido e que foi destruído a um custo terrível. Spock retruca dizendo que Gill deve ter acreditado que podia usar esse Estado de forma benigna, alcançando sua eficiência sem sadismo. Gill disse que no início funcionou, mas Melakon assumiu o comando e passou a drogar o historiador. Kirk consegue fazer Gill discursar para ordenar o fim da matança e acusar Melakon de traição, que alveja Gill com uma metralhadora antes de ser morto por Isak. Moribundo, Gill diz a Kirk que errou e que a Diretriz de Não Interferência é o único caminho. Gill ainda diz que até os historiadores falham em aprender com a História, repetindo os mesmos erros do passado. Pode até ser. Mas quem não aprende com a História tem muito mais chances de repetir os erros do passado.
Ao fim do episódio, fica a reflexão entre Kirk, Spock e McCoy de que o grande erro de Gill foi, mesmo com a melhor das intenções, acumular muitos poderes e não resistir à tentação de ser Deus. Ou seja, que poder absoluto corrompe absolutamente. Spock não podia deixar de ser sarcástico, lembrando que a História da Terra está coberta de exemplos de homens que acumularam poderes, brincando de ser Deus.
Vendo o desfecho do episódio e o que vimos sobre o fascismo, cabem aqui umas últimas palavras. A alegação de que o Estado Nazista foi o mais organizado que surgiu é baseado num pragmatismo que não leva em conta as origens de tal Estado. Por mais eficiente que esse Estado tenha sido em recuperar a Alemanha, ainda assim devemos lembrar que a sua origem é autoritária para garantir a manutenção de uma elite econômica burguesa no poder, desqualificando totalmente a democracia, rotulando-a de fraca e corrupta, pois ela permitia a ascensão de grupos socialistas ao poder. E essa recuperação da Alemanha tinha um objetivo bem específico: buscar a vingança contra aqueles que haviam derrotado a Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Ou seja, o Estado Fascista foi todo construído num espírito de ódio, autoritarismo e revanchismo. Ver tal Estado sendo usado de forma benéfica é algo um tanto complicado, pois ele foi forjado sob parâmetros altamente negativos desde a sua origem. Se, de um ponto de vista pragmático ele obteve resultados positivos, isso não significa que seja um modelo de Estado ideal. Ainda mais porque esse Estado permitia o poder absoluto nas mãos de uma só pessoa, algo que corrompe absolutamente, nas próprias palavras da tríade de Enterprise. Não é a toa que o Barão de Montesquieu apresentou, na época do Iluminismo, a sua Teoria dos Três Poderes, onde os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário substituiriam o poder absoluto dos reis do Antigo Regime, pois, quando temos três poderes, um vigia o outro, impedindo que um poder sobressaia e assim nós temos uma forma mais democrática e livre de governo. A democracia, mesmo com seus defeitos (nenhum sistema de governo ou Estado é totalmente perfeito), ainda assim é o sistema mais justo de governo.
Jornada nas Estrelas, Enterprise: Tempestade Temporal (S04 Eps 01 02 – “Storm Front”, escrito por Manny Coto)
Falemos, agora, do episódio duplo do início da quarta temporada de Jornada nas Estrelas Enterprise, intitulado “Tempestade Temporal”. Exibido pela primeira vez em 8 de outubro de 2004, esse episódio duplo está a cinquenta e nove anos do fim da Segunda Guerra Mundial e aqui o nazismo é mais visto como um pano de fundo do plot principal que é a Guerra Fria Temporal, onde os nazistas invadiram os Estados Unidos (Lênin foi assassinado, não houve a Revolução Russa e a Alemanha Nazista não tinha a União Soviética como grande preocupação, o que possibilitou a invasão à América). Ou seja, esse episódio duplo ficou com uma tremenda cara de decalque de “O Homem do Castelo Alto”, mesmo tendo sido feito anos antes para a TV (mas já com a referência do livro de Philip K. Dick). Um grupo de alienígenas do século XXIX fez uma aliança com os nazistas trocando tecnologia por recursos para construir um conduíte temporal para retornar ao século XXIX. Caberá a Archer e sua tripulação destruir o conduíte para que esses alienígenas não cumpram sua missão e não alterem o passado. Dentro de um plot como esse, a discussão sobre o nazismo acabou muito deslocada e tivemos apenas umas poucas referências esporádicas. Dentre elas, a conversa entre um soldado nazista e Archer que dizia que os estadunidenses não eram bons soldados, mas que tinham um bom cinema. Ou a conversa entre o alienígena e o oficial nazista onde o primeiro pode fornecer pragas a serem colocadas na água que faria o serviço dos campos de concentração, assim como a comparação que o alienígena faz entre a espécie dele e os nazistas: ambos abraçam ideais de pureza e perfeição e ambos enfrentam inimigos que poderiam destruí-los. Houve, também, o discurso do alienígena na construção do conduíte, que se aproximava bastante dos discursos e rituais do nazismo. Ainda, tivemos a violência nazista nas ruas e o ato de um nazista zombar, de forma racista, a companheira negra de resistência do Archer. Mas talvez a principal referência ao nazismo está no cinejornal ao início do segundo episódio, onde vemos a chegada de Hitler a Nova Iorque (alusão da chegada de Hitler a Paris). Além disso, o cinejornal diz que Hitler promete extirpar os parasitas que assolam a economia americana desde 1929, ou seja, os grandes empresários capitalistas que fizeram investimentos de risco que ajudaram a levar os Estados Unidos para a crise de 1929. Lembrando que Hitler tinha uma grande aproximação com a iniciativa privada (ele lançou mão da ajuda de empresários para fazer um plano semelhante ao New Deal na Alemanha), essa repulsa aos empresários estadunidenses soa como falsa (talvez ela fosse mais pertinente com Goebbels, que via o capitalismo de forma negativa, pois acreditava que a modernidade que vinha com o capitalismo poderia destruir as tradições alemãs). O cinejornal ainda dizia que a aliança Estados Unidos-Alemanha faria os trabalhadores estadunidenses voltarem ao emprego, numa referência à crise de 1929, onde o Führer tiraria os Estados Unidos da crise e do desemprego.
Conclusões.
Vimos como Jornada nas Estrelas, em toda a sua riqueza cultural, extrapola os limites da ficção científica e discute também temas de ordem política e social. Tomando como exemplo os episódios de Jornada nas Estrelas que abordam a questão do fascismo, pudemos perceber como “Padrões de Força” possui uma discussão muito mais rica sobre o tema, muito provavelmente por estar mais próximo ao fim da Segunda Guerra Mundial. Apesar do episódio levantar uma hipótese de que o Estado Fascista seria muito eficiente e ele poderia ser usado de uma forma benigna, devemos lembrar que esse Estado Fascista nasceu dentro de uma referência autoritária, odiosa e revanchista. Entretanto, o desfecho do episódio descarta totalmente o uso do Estado Nazista na tese do “poder absoluto que corrompe absolutamente”. Já em “Tempestade Temporal”, produzido quase seis décadas depois do fim da guerra, o fascismo foi mais usado como um pano de fundo para o arco da Guerra Fria temporal, que trabalha mais a noção de história alternativa. Ainda assim, o episódio deu margem para analisarmos umas poucas características do fascismo, mais presentes no cinejornal visto ao início do segundo episódio. Só é de se lamentar que ficou aqui registrado um Hitler que baniria o empresariado, quando tínhamos a situação oposta na vida real. De qualquer forma, a análise desses episódios é um excelente exercício para algumas reflexões sobre o regime fascista e de por que ele não deve jamais ser retomado sob qualquer circunstância na História da Humanidade.