Batata Books – Portal do Tempo. Quando Spock Tem Um Filho!

Por Carlos Lohse

Capa do Livro
Capa do Livro

A Editora Aleph fez um importante relançamento para os fãs de “Jornada nas Estrelas”. “Portal do Tempo”, de Ann C. Crispin, é simplesmente uma obra magnífica que consegue captar todo o ambiente da consagrada série clássica. Fã de “Jornada nas Estrelas” desde muito cedo, Crispin começou a rascunhar suas primeiras aventuras da Enterprise no papel aos 17 anos, no já longínquo ano de 1967. Mas foi em 1978, depois de rever o episódio “Todos os Nossos Ontens”, da terceira temporada da série clássica, que a escritora teve a ideia para escrever seu livro de ficção científica inaugural. A história de “Todos os Nossos Ontens” fala da volta de Spock e McCoy ao passado de um planeta chamado Sarpeidon, cinco mil anos atrás, o que vai levar Spock ao seu estado primitivo, onde ele age de forma completamente passional, come carne e se apaixona pela lindíssima Zarabeth. Crispin imaginou uma continuação para essa história, onde Spock teria gerado um filho em Zarabeth. Ao analisar dados arqueológicos de Sarpeidon, Spock descobre uma figura rupestre em formato vulcano, o que o impulsiona a voltar ao passado através do Guardião da Eternidade, uma espécie de portal consciente que permite as pessoas fazerem viagens pelo tempo. O filho de Spock, Zar, é encontrado, mas ele não recebe uma resposta afetiva de seu pai que, a princípio, age de forma extremamente fria. A alegação de Spock para buscar Zar é a de que a família é uma instituição muito importante em Vulcano, o que magoa muito o jovem rapaz. Assim, o livro mostra a odisseia de Zar para se adaptar à sua nova realidade a bordo da Enterprise, onde ele precisa conciliar sua forte carga de estudos ao aprofundamento de seus novos relacionamentos humanos. Mas haveria uma invasão romulana que ameaçaria o Guardião da Eternidade, adicionando mais um elemento interessante à trama. Isso sem falar que Zar possui misteriosos poderes. Mas, sem mais “spoilers”.

Spock e Zarabeth, um caso de amor
Spock e Zarabeth, um caso de amor

Crispin conseguiu fazer um livro delicioso de se ler (em 1983, o livro entrou para a lista do “The New York Times” das publicações mais vendidas). Seu êxito foi em resgatar todo o espírito da série clássica, com as características dos personagens protagonistas preservadas, embora tenhamos presenciado um McCoy muito menos rabugento e bem mais amável, tornando-se uma espécie de pai postiço de Zar, e um Spock muito mais vulcano do que humano com o filho, embora as doses de humanidade do personagem tenham sido usadas na quantidade certa e nas horas certas. O humor, um elemento recorrentemente usado na série, foi também muito usado, sobretudo nos diálogos entre os personagens que, diga-se de passagem, foram muito bem escritos. Os conflitos com os romulanos e uma violência em padrões um pouco maiores que os vistos nos episódios da série clássica, chamaram muito a atenção e apimentaram a coisa. Enfim, parecia que, ao ler as páginas do livro, estávamos assistindo a um genuíno episódio da série clássica. A autora fez também uma espécie de “fan service” (isso em 1978, imaginem!) fazendo alusões a vários personagens e situações expostas em episódios da série clássica, devidamente sinalizados nesta edição do livro em notas de pé de página. Aliás, essa foi a intenção da Aleph: que o livro não fosse apenas acessível para os velhos “trekkers”, mas também para pessoas que não conheçam muito bem o Universo de “Jornada nas Estrelas”. Para se ter uma ideia, há uma apresentação dos personagens principais e suas características mais marcantes, assim como ao fim do livro há uma espécie de miniglossário com alguns verbetes que ajudam o novo fã de “Jornada nas Estrelas” a compreender um pouco melhor tudo o que acontece nessa franquia que se tornou cinquentenária esse ano.

Assim, “Portal do Tempo” é uma grande obra literária de “Jornada nas Estrelas” e leitura obrigatória para qualquer “trekker”, assim como uma ótima porta de entrada para os leitores que ainda não conhecem as aventuras de Kirk, Spock e McCoy. A leitura desse livro é muito divertida, prazerosa e flui muito rápido. Vale muito a pena!

A autora, A. C. Crispin
A autora, A. C. Crispin

Batata Literária – Mário (à Mário Peixoto)

Era um menino muito franzino,

muito recluso, muito fechado.

Muito ligado à avó,

que, na adolescência foi estudar na Inglaterra.

Lá, teve contato íntimo com o cinema.

Se apaixonou pelos filmes alemães.

Mas sofria muito com a frieza do povo inglês

e, por isso, teve como amigos filhos do Império japonês.

De volta ao Brasil,

tinha como amigos estudiosos do cinema

que fundaram um periódico

cuja função era estudar o cinema teoricamente.

Ele via tudo à distância,

mas buscava um enredo para um scenario

do fundo de sua alma

onde a teoria vinha apenas como um apoio.

Logo escreveu o scenario.

Entregou-o para um diretor de cinema

e para outro.

Qual foi a conclusão dos dois?

O próprio menino franzino deveria dirigi-lo.

O scenario era complicado demais.

E todos aqueles que militavam pelo cinema

logo começaram a ajudá-lo.

De todo esse esforço

saiu um filme único, maravilhoso.

Um filme que explorava

a limitação da condição humana

perante o Universo.

Onde toda a angústia do ser

era exposta de forma fria e crua,

uma reflexão de até onde nós podemos ir em nossas vidas.

Mário Peixoto, um dos grandes cineastas brasileiros, que escreveu um roteiro e dirigiu aos 16 anos.
Mário Peixoto, um dos grandes cineastas brasileiros, que escreveu um roteiro aos 16 anos, e dirigiu “Limite”, considerado por muitos especialistas o maior filme brasileiro de todos os tempos.

Batata Books – Darth Plagueis. Criando O Universo Sith.

 

Capa do Livro (Aleph)
Capa do Livro (Aleph)

A Editora Aleph realizou um grande lançamento literário do Universo Expandido de “Guerra nas Estrelas”. Rotulado como “Legends”, “Darth Plagueis”, do eficiente escritor James Luceno, é uma daquelas obras que nos fazem amar o Universo Expandido com todas as nossas forças. É uma história que busca compreender a lógica dos Sith e sua História pregressa. É um livro que preenche uma lacuna muito importante sentida durante a exibição de “A Ameaça Fantasma”, e que poderia muito bem ser considerado uma obra canônica.

Você conhece a lenda de Darth Plagueis???
Você conhece a lenda de Darth Plagueis???

O ponto de partida do livro está naquela conversa entre o Chanceler Palpatine e Anakin Skywalker durante o Episódio III sobre a tragédia de Darth Plagueis, o sábio, um mestre Sith que queria ter controle total sobre os midi-chlorians para poder não somente evitar a morte e viver eternamente, mas também poder gerar a própria vida. Plagueis foi morto por seu próprio aprendiz, ou seja, Palpatine em pessoa. Mas, como teria sido isso? Qual foi o contexto que teria levado ao encontro entre o mestre e o aprendiz? Por que Plagueis foi assassinado? Essas foram as questões que Luceno quis responder em seu livro. E, podemos dizer que o autor fez isso de forma magistral, criando todo um passado para os Sith. Luceno não se limitou a descrever apenas as trajetórias de Darth  Plagueis e Darth Sidious (ou seja, Palpatine), mas também menciona Siths pregressos como Darth Tenebrous, que foi o mestre de Darth Plagueis, e de Darth Bane, conhecido por ter criado a famosa “Regra de Dois”, onde somente podem existir dois Siths de cada vez, ou seja, o mestre e o aprendiz, com o aprendiz tomando o lugar do mestre quando ele se sente preparado para isso. E como o aprendiz toma o lugar do mestre? Muito simples: assassinando-o! Para poder criar todo esse Universo, Luceno dedica páginas e páginas de textos altamente densos e explicativos, mas que não são cansativos, muito pelo contrário, pois eles nos ajudam a contextualizar toda a situação anterior ao Episódio I, como o poder ascendente da Federação de Comércio sobre Naboo, o poder de conglomerados econômicos como o Clã Bancário Intergaláctico, do qual Darth Plagueis fazia parte sob o nome de Hego Damask, a influência de Plagueis e Palpatine na construção do exército de dróides por parte da Federação de Comércio e na montagem do exército de clones por Zaifo Vias, além das conversas de Palpatine com Dookan estimulando-o indiretamente a abandonar a ordem Jedi e a se tornar um Sith. A parte final do livro, inclusive, ocorre paralelamente aos eventos do Episódio I.

Zaifo VIas
Zaifo Vias

É muito interessante notar como Luceno associa aos Sith as piores características do capitalismo selvagem e do fascismo.  Podemos perceber isso em vários pontos do livro. Todas as manobras do Clã Bancário Intergaláctico e da Federação de Comércio para aumentar sua área de atuação econômica através do ato de semear discórdias entre mundos fracos da Orla Exterior e o Senado em Coruscant, enfraquecendo a estabilidade política da República e estimulando os movimentos separatistas. Ou ainda, todos os assassinatos encomendados ou cometidos pelo próprio Sidious ou Plagueis para tirar do caminho seus adversários políticos, algo recorrente no fascismo italiano e no nazismo. Mas talvez o aspecto mais assustador foi todo um conjunto de experiências com midi-chlorians que Darth Plagueis fazia com seres vivos de várias espécies, algo que se assemelhava muito às experiências genéticas que Joseph Mengele fazia com prisioneiros de campos de concentração.

Palpatine. Tomando o lugar do mestre.
Palpatine. Tomando o lugar do mestre.

A forma como os Sith encaravam a Força em contraposição com a visão dos Jedi é algo também explorado no livro. Enquanto que os Jedi se deixam influenciar pela Força e atuam segundo os desígnios dela, os Sith, pelo contrário, pretendem dominar a Força e usá-la de acordo com seus interesses. Dessa forma, os Jedi seriam fracos e sua Ordem estaria irremediavelmente condenada à extinção, ao passo que os Sith, com seu poder e forte iniciativa, dominariam a Galáxia, o que era a essência do Grande Plano, mencionado ao longo de todo o livro.

É curioso notar como a maldição dos nomes de “Guerra nas Estrelas” para a língua portuguesa também aparece neste livro. Além do já conhecido chefe de segurança da Princesa Amidala (!), que atende pela alcunha de Panaka, temos personagens com o nome de Cabra e de Doriana. Das duas uma: ou isso acontece de propósito (tem algum brasileiro muito zoador por lá) ou é muito azar mesmo.

Dookan. Persuadido a passar para o lado sombrio da Força.
Dookan. Persuadido a passar para o lado sombrio da Força.

Após a história de Darth Plagueis, ainda há uma excelente entrevista com James Luceno onde o autor fala do processo de criação do livro, da pesquisa, das interações com a Lucas Licensing no processo criativo, do passado criado para Palpatine e das semelhanças entre Palpatine e Anakin Skywalker.

Assim, “Darth Plagueis” é mais uma obra-prima de James Luceno, que já tinha nos dado o excelente “Tarkin”, constituindo-se, na minha modesta opinião de iniciante do Universo Expandido, no melhor autor de “Guerra nas Estrelas” depois de Timothy Zahn. Se você gosta da trilogia “Prequel”, é uma leitura obrigatória. Se não, aí está uma boa chance para olhá-la com um pouco mais de carinho. Não deixe de ler.

Darth Plagueis. De dar medo!!!
Darth Plagueis. De dar medo!!!

Batata Literária – Penumbra

Eu sou a penumbra.
Aquela que está entre o claro e o escuro,
entre o amor e o ódio,
entre a alegria e a tristeza,
entre a tolerância e a intolerância,
entre a afeição e o desprezo.
Sou a linha tênue que une as dicotomias.
Estou espremida entre forças opostas.
Eu sou muito desfocada
e tento separar coisas bem definidas,
ou tento unir coisas bem definidas?
Essa indefinição me angustia,
essa indefinição me indefine.
Sou o sim ou sou o não?
O mais ou menos não me satisfaz.
De que lado estou?
Ou será que tenho uma função mediadora?
Tenho aversão aos extremos?
Tenho aversão aos exageros?
Serei, então, um ponto de equilíbrio?
Tenho função de acalmar forças tão opostas?
Oh, que tarefa ingrata
dada a alguém tão delicada, fina e tênue como eu!
Por que me foi dado tão pesado fardo?

Talvez eu tenha recebido esse malfadado trabalho
justamente por ser tão frágil
para que todos se lembrem
que os equilíbrios são muito instáveis
à medida que os extremos se tornam tão violentos.
Por isso, sou tão fina,
tão quebradiça e tão delicada,
sucumbindo à ignorância dos exageros.

penumbra

Batata Literária – Eclipse

Por Carlos Lohse

Era uma e meia da manhã.
O eclipse da Lua atingia seu auge.
Quase todo o disco lunar na umbra.
Apenas um pequeno filete de Lua nova,
metade azul, metade vermelho,
por efeitos da atmosfera terrestre.
Mesmo azul e vermelho
dos extremos do espectro visual.

De forma fantasmagórica,
mares e crateras ficavam translúcidos
na estreita penumbra.
O frio e a escuridão desses monumentos geológicos
me tocam profundo na alma.
Trazem serenidade e tranquilidade
sentimentos iguais aos nomes de mares lunares
que imperam no vazio de nossas imaginações.

Queria eu estar lá,
no frio cortante das profundezas abissais das crateras,
queria eu estar lá,
nas superfícies planas de areia fofa dos mares,
onde a solidão se estende por 360 graus.
Pois lá eu poderia refletir profundamente
o que tenho feito da minha vida,
escondido de tudo e de todos.

Todos nós às vezes
precisamos desses mares e crateras,
desses frios cortantes solitários e plácidos,
para que possamos refletir
até que ponto mergulhamos a vida dos que nos cercam,
dos que nos amam e estimam,
dos que nos valorizam,
num profundo eclipse da alma…

eclipse

Batata Books – A Armadilha do Paraíso. A Gênese de um Herói.

 

Por Carlos Lohse

A Editora Aleph faz mais um bom lançamento da série “Legends” de “Guerra nas Estrelas”. “A Armadilha do Paraíso”, escrita por A. C. Crispin, a mesma autora de “Portal do Tempo”, um livro do Universo de “Jornada nas Estrelas”, é o primeiro livro de uma trilogia que fala do início da trajetória de um herói muito amado por todos: Han Solo. Um dos personagens mais icônicos de “Guerra nas Estrelas”, Han Solo pode ser qualificado como um daqueles mocinhos de jeitão canalha. Se nos primórdios do cinema, os mocinhos eram personagens que tinham apenas virtudes e não tinham qualquer defeito, com o tempo esse modelo se desgastou e os mocinhos passaram a ficar também com características, digamos, menos nobres. Um dos primeiros personagens desse modelo foi o inesquecível Rick, interpretado por Humphrey Bogart em “Casablanca”. E, definitivamente, Han Solo se tornou o paradigma desse mocinho para as gerações mais recentes. Por isso, Crispin destilou todo o seu talento para criar um passado para esse personagem tão cultuado.

Quem é este homem???
Quem é este homem???

E o que podemos dizer do primeiro livro da trilogia Han Solo? Ele é tudo de bom. A autora se focou nas características do personagem exibidas em “Uma Nova Esperança”, ou seja, o fato de Solo ser um grande malandro, apenas pensar nele e de ser um descrente total em qualquer questão de ordem mística ou religiosa, para buscar as origens disso. Dando uns pequenos “spoilers”, nosso personagem teve uma infância muito difícil. Ele não sabe sua origem, viveu como menino de rua e praticamente como escravo de um grupo de contrabandistas, sendo espancado sistematicamente em sua infância. Mas, para sobreviver, ele fugiu, não sem antes ver quem o amava, uma Wookie, por sinal, ser assassinada. Sua ideia era ser piloto num planeta chamado Ylesia, onde havia uma fábrica de destilação de especiarias que eram usadas como drogas. Mas lá havia também uma estranha seita cujos fiéis entravam num estranho transe. O plano de Solo era juntar o máximo de créditos que pudesse como piloto para entrar na Academia Imperial. Em tempo: Solo já tinha alguma experiência como piloto de speeders. Só que seu plano sofreria uma mudança de rumo ao conhecer uma fiel que trabalhava na confecção de especiarias, que não tinha um nome, mas sim um número: 921. A partir daí, a vida de Solo se transformará numa verdadeira montanha-russa, com situações que nos darão todas as condições de testemunhar o amadurecimento desse personagem.

921, o primeiro amor de Han Solo.
921, o primeiro amor de Han Solo.

Crispin consegue uma narrativa altamente feliz e nos dá, com muito êxito, um passado para Solo. Tudo o que o personagem passa nessa história torna o comportamento dele em “Uma Nova Esperança” plenamente compreensível. Seus sonhos, dores, expectativas e angústias tiram aquela capa durona dele e nos mergulham em sua natureza mais frágil, que ele quer esconder de todos. Vemos ainda aparecer um senso de companheirismo e dignidade no personagem à medida que a narrativa avança, afastando-o de sua visão inicial de menino de rua instruído a praticar furtos. Tudo isso regado a muita ação e romance, que em alguns momentos ficava um pouco excessivo. A personagem 921, por exemplo, nos remetia muito àquelas donzelas indefesas de filmes da época muda. Mas isso não tira o brilhantismo da narrativa e a boa construção do personagem de Han Solo a qual o livro se propôs.

Dessa forma, “A Armadilha do Paraíso” é mais um excelente lançamento da série “Legends” de “Guerra nas Estrelas” trazidas a nós pela Editora Aleph e, o melhor de tudo, esse é apenas o primeiro livro da trilogia que busca compreender a trajetória de Han Solo escrita por uma autora de gabarito como A. C. Crispin. Imperdível em todos os sentidos.

A autora A. C. Crispin
A autora A. C. Crispin

Batata Literária – Dançando no Paraíso (a Fred e Gene)

Por Carlos Lohse

– Gene!

– O que foi, Fred?

– Está na hora do ensaio.

– Humm, OK, vamos lá. O que vai ser hoje?

– Sapateado, ué…

– De novo? Não fizemos ontem?

– Por seu amigo, Gene.

– Tá certo, Fred, tá certo.

– Então vamos lá. Aqueles mesmos passos de ontem. Um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro, um, dois, opa!

– O que foi, Fred? Fiz errado de novo?

– Não que você tenha feito errado, mas a sincronia das batidas dos nossos pés não ficou perfeita.

– Que ouvido, hein? Às vezes acho que você escuta demais.

– Tem que ser perfeito, Gene.

– É por isso que a Ginger reclamava tanto de você.

– Ela era meio preguiçosa, né, Gene?

– Sei lá, só sei que ela era a namoradinha de muita gente. De todos os que assistiam a nossos filmes.

– Tempos bons da RKO e da Metro, não?

– Ô, nem fale. Fizemos a alegria de muitas pessoas totalmente desesperançadas.

– Que não tinham emprego, dinheiro, que passavam fome.

– Foram tempos muito difíceis.

– Ás vezes me pergunto, Gene. Por que o homem tem essa natureza tão dúbia?

– Como assim?

– Ora, veja só. Aquela crise toda foi produzida por tanta ganância e, ao mesmo tempo, procurávamos dar um pouco de alegria àquelas pessoas.

Fred Astaire, o maior sapateador de todos os tempos.
Fred Astaire, o maior sapateador de todos os tempos.

– Sabe-se lá porque, Fred. Mas que também ganhamos muito dinheiro, nós ganhamos.

– Sente-se culpado?

– Sei lá, Fred! Você está muito filosófico hoje!

– Acho que é toda essa atmosfera etérea que nos envolve.

– Bom, vamos continuar?

– Vamos lá!

– Comece.

– Um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro, opa!

– Ah, não. De novo, Fred?

– Agora quase foi. Faltou um tantinho!

– Quem é o coreógrafo e bailarino aqui? Não sirvo para sapatear?

– Tem que ser…

– Perfeito, já sei.

– Sabe, Gene…

– O que é, Fred?

– Às vezes me pergunto. Fizemos o certo?

– Como assim?

– Não alienamos as pessoas com nossos filmes? Não desviamos a atenção do verdadeiro foco dos problemas delas?

– Não seja duro com você mesmo, Fred. É como diz aquele sul-americano: ser firme, mas sem perder a ternura.

– Você virou revolucionário?

– É claro que não! Só digo que precisamos ser responsáveis, mas com uma pequena dose de irresponsabilidade.

– E os irresponsáveis somos nós aqui, né?

– Claro que sim! Como eu poderia fazer aquela sequência com a Cyd Charisse em “Cantando na Chuva” sem ser irresponsável? Eu tinha que ousar! Mas havia responsabilidade também! O trabalho era muito detalhista, meticuloso, assim como o seu sapateado.

– É, Gene, agora você me tirou um peso das minhas costas,

– Sempre às ordens, Fred. Vamos continuar?

– Sim, mas antes uma pergunta.

– O que é?

– O que vamos fazer amanhã?

– Ensaio de canto com o Frank.

– Isso é covardia! Ele nos exige sempre o máximo das nossas cordas vocais!

– Não reclame, Fred. A minha tarefa, que será fazê-lo dançar na próxima semana, será bem pior.

– Precisávamos reunir a turma toda da RKO e Metro novamente.

– Por que?

– Para fazer um grande musical

– Com qual intuito?

– O de alegrar pessoas tristes, como nos velhos tempos. Vir para cá de uma hora para outra é um grande choque para qualquer um.

– É o curso normal da vida, Fred. Mas podemos pensar num musical sim. Vamos juntar a turma na semana que vem, OK?

– OK. Vamos retomar o ensaio então?

– Vamos lá.

– Um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro. Opa! Olha a falha na sincronia de novo!

– Ai…

Gene Kelly, um grande bailarino e coreógrafo!!!
Gene Kelly, um grande bailarino e coreógrafo!!!
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