Batata Movies – Festival Do Rio 2017 – Antipornô. Uma Visão Da Mulher Na Sociedade Japonesa.

Cartaz do Filme

Ainda sobre o Festival do Rio 2017. Na  Última Chance, teve-se a oportunidade de assistir ao filme “Antipornô”. Escrito e dirigido por Sion Sono, esse é o tipo da película em que a gente precisa captar o que quer ser dito bem lá nas entrelinhas. Eivado de um conteúdo bem surreal, o filme quer falar de aspectos da função da mulher na sociedade japonesa, sociedade essa que, segundo as más línguas, vê a mulher de uma forma bem preconceituosa e possessiva.

Uma ninfeta impiedosa

Mas, no que consiste a história? Vemos aqui uma ninfetinha muito sensual, Kioko (interpretada por Ami Tomite) numa espécie de ritual de autocelebração. Em trajes mínimos, com uma nudez mal disfarçada, a moça recebe uma visita sendo cultuada por uma equipe de produção muito exótica, com direito até a dominatrixes. Para se sentir muito poderosa, ela lança mão da humilhação pública à sua secretária particular, Noriko (interpretada por Mariko Tsutsui), uma mulher de meia idade totalmente submissa à sua jovem patroa, que pinta e borda com a secretária, obrigando-a a andar de quatro e a estimular a jovem sexualmente, isso quando não é obrigada a se deixar estuprar pela tal equipe exótica. O circo de horrores das humilhações à secretária permanece, até que vem a palavra “Corta!” invertendo completamente o contexto. Na verdade, víamos uma filmagem e agora é Kioko quem é humilhada por todos, principalmente por Noriko, que é uma atriz consagrada enquanto que a ninfetinha somente começa a dar os seus primeiros passos, sendo, portanto, desprezada com veemência, onde até a agressão física é utilizada. Esse é mais ou menos o fio narrativo  condutor da película, que acaba passando por vários momentos surreais de pura transgressão, com o intuito de alfinetar qualquer paradigma mais tradicional. Há uma clara intenção de atacar a moral e os bons costumes com uma retórica do absurdo de forte apelo sexual. Pouco a pouco, a narrativa vai perdendo a coesão até ficar totalmente fragmentada, guardando ainda em seu interior a ideia principal, que é a de que a mulher japonesa, apesar de viver numa sociedade teoricamente livre, civilizada e tecnológica, ainda assim é tratada com desdém e com repressão por uma componente masculina altamente machista. E a única alternativa para essa mulher é repudiar totalmente essa suposta “liberdade” de uma forma extremamente violenta, onde a liberdade reside em ser dona do seu próprio corpo e buscar um prazer sem limites. Ou seja, a verdadeira liberdade reside em ser uma verdadeira puta, que não tem limites para a sua transgressão.

Uma secretária submissa. Mas será sempre assim?

Com tal afirmação de cunho bem extremo, o filme se transforma numa sucessão de imagens onde o sexo explícito, a nudez, o sadomasoquismo e as fortes cores ditam o tom. Devo confessar que esse espírito transgressor extremado chega em alguns momentos até a ficar maçante, mas por outro lado, é muito curioso que haja essa explosão num produto cultural japonês, que consegue conciliar com maestria tradição e modernidade. Em “Antipornô”, por sua vez, a tradição é totalmente rechaçada e até ridicularizada, nas cenas de sexo explícito do casal conservador perante a mocinha de sensualidade a la Sailor Moon, ou seja, aquela coisa inocente, mas nem tanto. Sabemos que existe todo um fetiche em cima das adolescentes estudantes com roupa de marinheiro lá no Japão, algo que o patrulhamento ideológico de certos países subdesenvolvidos gritaria como pedofilia pura. Parece que o Japão não vê as coisas da mesma forma e se abre um pouco mais a esses fetiches, justamente num país com baixas taxas de natalidade se comparadas com as do nosso. Perversão? Válvula de escape? Que cada um tire suas próprias conclusões.

Quilos e quilos de surrealismo

É curioso também notar como a troca de papéis entre as duas protagonistas busca espelhar esse papel submisso da mulher na sociedade japonesa. A submissão de Kioko no mundo real é muito maior que a submissão de Noriko no mundo da fantasia. Esse último é um mundo de mulheres, onde a humilhação desvirtua a tradição, ao passo que o mundo real é mais um mundo de homens, onde a mulher e sua sensualidade é que são desvirtuadas. Logo, a humilhação acaba sendo muito mais forte nesse mundo real, definindo um contraponto altamente desproporcional.

O diretor Sion Sono

Dessa forma, “Antipornô” tem o grande mérito de destrinchar o papel da mulher na sociedade japonesa contemporânea, lançando mão de uma linguagem agressiva, onde a mensagem reside mais nas entrelinhas do que em qualquer outra coisa. O filme é agressivo e tem a nítida intenção de incomodar. Se você sai ileso de toda essa torrente irracional, você conseguirá detectar um discurso bem racional em seu interior. E é isso que dá grandeza à película, ou seja, uma pílula de bom senso mergulhada em litros de nonsense. Vale a pena procurar essa película por aí nos Youtubes da vida. Mas não se choque, por favor.

Batata Movies – Festival Do Rio 2017. Dedo Na Ferida. Desmistificando A Falácia Capitalista.

                               Cartaz do Filme

A Batata Espacial esteve no Festival do Rio 2017 e prestigiou oito filmes por lá. Vamos começar a nossa cobertura falando de um filme do grande cineasta brasileiro Silvio Tendler, que está de volta com um documentário de importância fundamental para se entender os tempos turbulentos pelos quais nós temos passado. “Dedo Na Ferida” vai abordar os aspectos relativos à crise mundial, desmistificando o discurso capitalista de austeridade e Estado mínimo, mostrando que a verdadeira culpa de tudo o que tem ocorrido em termos de crise mundial reside nas atitudes e desmandos do capitalismo financeiro, que inclusive ameaça as democracias das nações.

O cineasta Costa Gavras é um dos entrevistados

Esse documentário é repleto de trechos de falas de especialistas, do Brasil e do exterior, que analisam de forma profunda o que tem quebrado nações inteiras como Portugal, Espanha e Grécia, além das amargas soluções propostas pelo capitalismo financeiro especulativo, que funciona sem qualquer regulação ou freio por parte dos governos. Isso porque há gente do próprio capitalismo financeiro ditando as regras nos governos ou obrigando tais governos a obedecerem tais regras, sob pena de um estrangulamento econômico ainda maior. O documentário mostra a diferença entre uma economia produtiva, onde o crescimento depende da produção industrial, das vendas e dos lucros que conseguem abrir mais postos de trabalho e salários, e a economia financeira especulativa, onde uma dívida interna com altas taxas de juros é paga pelo governo com o dinheiro dos impostos dos contribuintes, economia financeira essa onde o capital não circula para as populações nem para o processo produtivo, circulando somente entre o empresariado. O mais chocante nisso é que presenciamos o mesmo quadro que existia no capitalismo pré-crise de 1929, onde os governos garantiam liberdade total para os grandes empresários sem qualquer freio em atividades especulativas e de risco.

Essa liberdade total dada ao capitalismo financeiro provoca graves problemas de ordem social e dão origem a um ultranacionalismo de direita que coloca toda a culpa da crise nos setores menos favorecidos da sociedade, como os pobres e negros no Brasil e os imigrantes da Europa, além de ajudarem a convencer o grande público de que políticas de austeridade são necessárias para acabar com a crise, sendo que a população deve abrir mão de seus direitos democráticos. Ou seja, com a Guerra Fria, o Welfare State e a classe média eram necessários para manter o capitalismo como um sistema bem visto perante o socialismo (ironicamente eram características do socialismo no capitalismo que mantinham o capitalismo bem na fita). Mas com o fim da Guerra Fria, o capitalismo não precisa mais desse artifício e a exploração se tornou bem mais desumana, com o liberalismo econômico extremado dos grandes grupos financeiros ameaçando a democracia, a autonomia e a soberania das nações, grupos financeiros esses que são uma grande ameaça à liberdade de todos hoje, pois uma atividade especulativa qualquer (as chamadas profecias autorrealizáveis) são capazes de destruir economias e governos de nações inteiras da noite para o dia. E o quadro é altamente sombrio quando falamos em previsões de como se virar esse jogo.

o ex-ministro das finanças da Grécia dá um importante depoimento

Dá para perceber como esse documentário é de uma importância absurda e de como o cinema cumpre nele sua função social de denúncia com grande maestria. Além dos depoimentos de especialistas em economia, que nos apresentam todo esse contexto numa linguagem bem simples e compreensível, o documentário também lançou mão do recurso da animação, onde situações expostas pelos especialistas eram explicadas de forma bem gráfica e com a narração de Eduardo Tornaghi. Talvez todo esse cuidado em se tornar a coisa bem didática tenha origem no mito de como o “economês” é algo de difícil compreensão para o grande público. E esse mito não parece somente pairar aqui sobre o Brasil. O filme “A Grande Aposta”, lançado há poucos anos e que justamente conta a história da bolha do mercado imobiliário americano que detonou toda essa crise econômica mundial mais recente, também lançava mão de explicações bem didáticas sobre questões econômicas, dadas por pessoas que não eram do meio econômico, tais como uma prostituta ou a cantora latina Selena Gomez.

                   Silvio Tendler

Assim, “Dedo na Ferida” é um daqueles filmes que a gente deve ver, ter e guardar. Esperemos que ele entre em grande circuito após o Festival do Rio deste ano e que seja lançado em DVD. Ter um documentário deste quilate e divulgá-lo em tempos tão sombrios de ignorância e tolerância chega a ser um dever cívico a meu ver.

Batata Antiqualhas – Jornada Nas Estrelas 4. Radiografando Um Longa: A Volta Para Casa (Parte 1).

               Cartaz do Filme

E chegamos ao quarto longa da tripulação da série clássica. Sem sombra de dúvida, o melhor filme de todos, o de maior sucesso de público. Tem gente que não é fã de “Jornada nas Estrelas”, mas disse que viu “o filme das baleias”, que trazia o otimismo com relação ao futuro, inerente a Gene Roddenberry. “A Volta Para Casa” é o mais fiel longa-metragem à série, além de contar com um excelente roteiro, sendo o auge dos seis filmes produzidos. A equipe de produção disse que se divertiu muito ao fazer o filme, incluindo Leonard Nimoy, que ajudou a conceber a história, assinou a direção e ainda atuou.

     A tripulação da Enterprise agora em 1986

Após os sucessos de bilheteria de “A Ira de Khan” e “A Procura de Spock”, Nimoy recebeu uma espécie de carta branca para fazer o novo filme, ou seja, ele tinha a autorização de colocar sua visão e ele queria fazer uma história sobre viagem no tempo. Harve Bennett, o produtor, só impôs uma condição: que o filme tratasse do tempo presente daquela época, o ano de 1986. Era necessário, portanto, um motivo para a volta no tempo. Foi encontrada a saída da questão da extinção das baleias jubarte. Logo, o filme abordou um tema referente à consciência ecológica que despontava em meados da década de 1980. Foi criada a ideia de uma sonda alienígena que viria à Terra para se comunicar com as baleias, e não os humanos que, segundo Spock, na sua arrogância pensam que são a única espécie inteligente da Terra. Mas, no século 23, as baleias jubarte já estariam extintas e o sinal de comunicação da sonda alienígena interferia nas fontes de energia da Terra e das naves que cruzavam o caminho. Enquanto isso, nossa tripulação saía de seu exílio em Vulcano para retornar à Terra e encarar a corte marcial, depois do sequestro da Enterprise para salvar Spock. Voltando na Ave de Rapina, eles receberam a mensagem de não se aproximar da Terra, em virtude da sonda alienígena, que mandava seu sinal em direção ao mar. Ao receber o sinal da sonda, Kirk pediu a Uhura para verificar como ficaria o sinal dentro da água salgada do mar. O resultado foi o canto das jubartes. Devido à sua extinção, era necessário retornar ao passado para buscar as baleias e transportá-las para o século 23, com o objetivo de fazê-las entrar em contato com a sonda. A Ave de Rapina fará isso contornando o Sol em alta velocidade warp, usando ainda o forte campo gravitacional do astro para aumentar ainda mais a velocidade da nave e, assim, retornar ao passado (essa “dobra temporal” usando o campo gravitacional do Sol foi usada no excelente episódio da série clássica “Amanhã é Ontem”, escrito por D. C. Fontana, que um dia ainda falaremos aqui).

              Kirk e Spock à procura de baleias…

Nimoy quis um filme menos sério que os outros onde, além da busca da solução do problema apresentado, também  houvesse um toque de humor. Essa tarefa ficou a cargo de Nicholas Meyer, o diretor de “A Ira de Khan”, que se surpreendeu com o pedido de Nimoy, mas escreveu a parte do roteiro que tratava da tripulação perambulando pela San Francisco de 1986, enquanto que Benett ficou responsável pela parte do roteiro no século 23. O responsável pela Paramount, Ned Tannen, gostou muito do roteiro, e as filmagens começaram. Para Nimoy, foi fácil trabalhar nas filmagens, pois ele também havia trabalhado no roteiro por um ano e meio.

                              “Hello, Computer!”

Ao se trabalhar com viagens no tempo, a produção do filme esbarrou na velha questão: não se pode alterar o passado. Em vez disso, a produção optou por não ter medo de alterar o passado, desde que se avise isso antes e lançando mão de doses de humor. Vemos tal situação quando Kirk penhora no século 20 um par de óculos que McCoy lhe deu de presente no século 23. Alertado por Spock sobre isso, Kirk responde. “Sim, foi um presente de McCoy e será de novo”. Ou então na cena em que Scott dá a fórmula de alumínio transparente para o dono da fábrica no século 20, em troca das placas que usarão no tanque das baleias. McCoy disse a Scott que ao dar a fórmula, eles estarão alterando o futuro. Ao que Scott retruca: “Por que? Como sabemos se ele não foi o inventor?”. Benett disse que usou essas passagens com o intuito de resolver o problema e tirar os céticos do caminho.

No próximo artigo, continuaremos falando mais sobre esse que foi o melhor de todos os longas da série clássica. Até lá!

 

Batata Literária – O Barulho

Maldito barulho!

Desde o arrulho

dos pombos da praça

Até a queda do bagulho

que a minha orelha arregaça!

É a gritaria no trem!

É a gritaria da criança!

Assim não dá para ficar zen!

E me acaba a temperança!

 

Já percebeu como as pessoas

agora só falam gritando?

E o silêncio inutilmente fico esperando

tal como náufragos em canoas

esperam salvadoras ilhas!

Ai, como eu queria estar a milhas

desse barulho infernal!

Ai, há esporro até no Natal!

E também quando a menina perde o selo virginal!

 

Na cidade, o pau d’água berra

Na estrada, a carreta libera

o som da buzina inquieta

que meu ouvido martela

Nosso mundo é uma fábrica de loucuras

em que cada vez mais raras são as pessoas mudas

Queria estar nos confins do Sistema Solar

onde o barulho jamais vai chegar

e meus tímpanos vão finalmente descansar

 

Não sei por que as pessoas são assim

emitindo seus sons sem fim

Há tanta falta de educação

que não sabem que a quietude é uma salvação

Pais ensinam seus filhos a gritar

sem perceber os rumos que isso irá tomar

Nosso país é a República dos gritalhões

Explosões sonoras aos borbotões

e eu ouvi o brado dos trouxões

 

Chega!

Vou também gritar!

Se todo mundo grita mesmo

darei meu berro de desespero!

 

SOCORRO!!!!

Batata Séries – Jornada Nas Estrelas – Discovery – Episódio 4 Temporada 1 – A Faca Do Açougueiro Não Ouve O Berro Do Cordeiro. Fins Justificam Os Meios?

Burnham. Pesquisando um tardígrado

E saiu mais um episódio de “Jornada nas Estrelas, Discovery”, ainda dentro do muito clima de polêmica que a série tem produzido e provocado muitas discussões entre os fãs. Esse é o episódio com o segundo maior título de toda a franquia e parece que ele tem embutido uma espécie de grito de protesto contra os rumos que a série toma, gritos esses que estão ecoando nos trekkers mais tradicionais.

Landry. Morte desnecessária

Mas, no que consiste a trama desse episódio? Ele já começa com uma contradição com relação ao episódio anterior, no que se refere à relação entre Saru e Burnham. Se antes Saru tinha um relacionamento até certo ponto terno com Burnham, agora quando fica claro que ela vai fazer parte da tripulação definitiva da Discovery, Saru volta a ter um comportamento um tanto repulsivo com relação a ela, onde seus gânglios agitados denunciam medo de que ela seja perigosa para a nave. Mais uma brusca alteração de comportamento desse personagem, que oscila a cada episódio. Isso por um lado é interessante, pois mostra toda uma complexidade de Saru, mas por outro também o coloca como uma espécie de cara que não sabe exatamente o que quer. Isso deveria ser definido mais claramente, ou seja, ele é a favor ou contra Burnham na nave? Que isso seja definido de forma mais visível.

Continuando a falar sobre o episódio, Lorca dá a Burnham a missão de descobrir como usar o tardígrado (o tal bichão assassino do episódio anterior) como uma arma. Para isso, Burnham terá a ajuda da chefe de segurança Landry. Ao analisar mais a fundo o tardígrado, Burnham percebe que o bichão é uma versão macroscópica de uma criatura microscópica altamente resistente que vive na Terra há milhões de anos e somente descoberta recentemente (quer dizer, o bicho existe mesmo e pode estar aí em cima de você agora!), e começa a suspeitar de que o animal pode não ser agressivo, mas Landry, totalmente influenciada pelo espírito belicista de Lorca, insiste que o animal deva ser usado como arma. Enquanto isso, Lorca recebe informações de uma almirante que um planeta que contém uma mina que produz cerca de 40% do dilítio da Federação está sob ataque klingon e a Discovery é a única nave que pode chegar lá a tempo, por causa do motor de esporos. Entretanto, Paul Stametz, responsável pelo motor, diz que ele não tem a precisão de navegação para chegar aos objetivos traçados. Para piorar a situação, numa atitude totalmente destemperada, Landry solta o bichão para “tirar um pedaço dele” para análise, depois de ouvir os gritos de desespero dos habitantes do planeta atacado pelo rádio e acaba sendo morta pelo tardígrado, o que coloca uma pressão extra de Lorca em Burnham. Definitivamente, essa foi uma morte totalmente desnecessária, exceto pelo fato de que agora Burnham poderá ter um posto efetivo na Discovery (dá a impressão de que essa era a intenção dos roteiristas, vamos ver). Mesmo assim, essa morte ficou muito esquisita e se perdeu uma boa oportunidade de se transformar Landry em uma personagem mais próxima de um espírito mais humanitário a la Federação e contra Lorca.

O que você quer da vida, Saru???

Voltemos à história. Enquanto isso, Vog e L’Rell, um casal klingon, continuava nos escombros das naves que passaram pela batalha das estrelas binárias, depois de seis meses (???), comendo, inclusive, o corpo da capitã Georgiou para sobreviver (????). Eles estão na dúvida se tiram ou não o dilítio da Shenzhou para poder colocar sua nave para sair de lá. Vog, como uma espécie de herdeiro espiritual de T’Kuvma, acha que retirar  dilítio da nave que matou seu senhor soaria como uma blasfêmia. Mas L’Rell o convence de retirar o material. Nisso, surge Kol, da casa de Kor, que acaba tirando o dilítio e a nave de Vog. L’Rell finge, num primeiro momento, ficar ao lado de Kol, mas acaba se transportando para a Shenzhou, para onde Vog foi enviado. Os dois ficam lá naquela nave da Federação em escombros que aparentemente não tem nada para tirá-los daquela situação. Aqui, devemos fazer um pequeno parêntesis. Muito se tem falado mal dos klingons por aí, desde a maquiagem que esconde as feições dos atores, atrapalhando sua interpretação, passando pela pronúncia do idioma klingon (eles parecem estar com um chumaço de algodão na boca), são sem honra, são bundões, etc., etc. Entretanto, creio que essa coisa de ter surgido um casal renegado de posse de uma nave da Federação pode dar um fôlego interessante a esse arco. A presença de Kol, totalmente sem honra e passando por cima do messianismo de T’Kuvma encarnado em Vog lembra um pouco a cisão entre sunitas e xiitas no islamismo. Os primeiros são seguidores da Suna, um dos livros do islamismo e os segundos se intitulam descendentes diretos do profeta Mohammed. Nesta visão de Discovery, T’Kuvma faria o papel de Mohammad, o casal Vog e L’Rell seriam os xiitas e Kol faria mais o papel sunita (lembrando sempre que essa é uma comparação que cabe se for relativamente superficial). Ou seja, a cisão interna entre os klingons pode trazer um molho especial, pelo menos é o que eu espero. E a falta de honra de Kol nisso tudo? Aí a gente pode se lembrar de que as 24 casas ainda não estavam suficientemente unificadas e o conceito de honra talvez não estivesse totalmente cunhado, sendo esse um dos objetivos de T’Kuvma. Esperemos que as cabeças dos roteiristas estivessem suficientemente iluminadas para terem antecipado todas essas alternativas em histórias futuras. Caso contrário, cartas (ou e-mails, tweets e comentários) para a CBS.

Kol, um klingon sem honra

Continuemos a história. Depois de alguns estudos (e muitos tecnobabbles), Burnham descobriu que o tardígrado poderia ajudar a Discovery a traçar os rumos de navegação corretos, pois ele comia os esporos. Ainda, ele não seria visto como uma ameaça para a tripulação, pois Burnham fez uma espécie de teste com Saru, sem o conhecimento deste, e seus gânglios não teriam se agitado com o bichão (se Saru, que é o mais covarde de todos da tripulação, não tem medo do tardígrado, ninguém mais terá).  O problema é que, para fazer isso, o bichão era aprisionado e torturado para a nave poder chegar à rota traçada, o que deixou Burnham perplexa e sem reação naquele momento. Esse acabou sendo o mote principal do episódio. O espírito belicista de Lorca meio que autoriza a tortura de um ser vivo para a nave alcançar seus objetivos. A alusão ao episódio “Demônio da Escuridão” da série clássica é imediata. Só que, naquela ocasião, encontrou-se um meio termo que levou a uma boa convivência entre a orta e os humanos. Aqui em Discovery, os fins parecem justificar os meios e o pobre do tardígrado é torturado para que a nave consiga traçar a rota correta com o motor de esporos. Isso provocou uma grita geral entre os fãs. Contudo, o que parece que está começando a acontecer é que até alguns personagens começam a se sentir desconfortáveis com tais situações e atitudes que saem muito dos rumos e parâmetros que a Federação tem. Já foi falado em artigos anteriores que está ficando muito clara a posição altamente singular que a Discovery tem perante à Federação. Burnham inicialmente ficou sem reação, tamanha a sua perplexidade quando viu o sofrimento do tardígrado. Esperemos agora que a protagonista tenha uma posição mais dura perante Lorca com relação a esse assunto nos próximos episódios, pois esse gancho é o que mais aproximou a série do cânone até agora. Dentre os inconformados com relação a forma como as coisas são levadas na Discovery, a gente também não pode se esquecer de Paul Stametz e suas desavenças com Lorca, que usa o projeto do cientista para fins bélicos e Stametz quer um uso científico para a coisa. Apesar de Stametz ser contra a guerra e não se entender com Lorca (a relação entre os dois, aliás, é bem tensa), o cientista também não se preocupou muito com o bem estar do tardígrado quando percebeu a utilidade do bichão para o sucesso de sua pesquisa. Entretanto, com o passar dos episódios, fica a impressão de que a tripulação está cada vez mais desconfortável com as atitudes de Lorca, principalmente quando ele tentou “estimular” seus comandados a alcançarem resultados melhores mais rapidamente, colocando todos para escutar os gritos de desespero do povo atacado pelos klingons no planeta mina. Mais assédio moral do que isso, impossível. Se bem que Lorca já sentenciou que a nave “não é uma democracia”. Agora, o que realmente caiu mal foi todo aquele malabarismo que a nave fez no CGI ao acionar o motor de esporos. Muito desnecessário, com uma papagaiada bem infame.

Um tardígrado de verdade!!! Fofinho, não???

Alguns fãs também têm falado daquela hipótese que a Discovery teria algo a ver com a Seção 31, pois somente isso justificaria o ambiente da nave tão desvirtuado dos preceitos da Federação. Eu confesso que prefiro inicialmente ficar com um pé atrás com relação a isso, pois estaria muito na cara (o número de série da Discovery é NCC-1031). Sem querer ser lusófobo, parece aquela piada de português de que o agente secreto de Portugal é o Manoel do terceiro andar, ou seja, todo mundo conhece o agente secreto. Então, de secreto ele não tem nada. Essa é a minha impressão, pelo menos por enquanto, de se associar a Discovery à Seção 31. Espero que os roteiristas não tenham caído em algo tão óbvio.

Concluindo, vou voltar a dizer que ainda espero algo de bom com relação à série. Achei esse episódio melhor que os outros, pois ele se aproxima do espírito de Jornada nas Estrelas no que se refere ao tardígrado (sem falar que o tardígrado é um ser real descoberto por uma ciência recente e contemporânea à filmagem dos episódios da série, algo que já vimos em outros episódios da franquia), mostra uma cisão interessante entre os klingons que, se bem trabalhada, pode render bons frutos, exibe como parte da tripulação já se manifesta de uma forma bem desconfortável com relação a Lorca (inclusive Saru, que reclama a Burnham que Lorca não escuta suas recomendações cheias de precauções) e manteve o clima de expectativa de o que vai acontecer com tais atitudes belicistas e amorais de Lorca por elas entrarem tão em choque com o cânone de Jornada nas Estrelas. O que vai sair daí? Uma reviravolta aceitável para os fãs mais tradicionais? Ou um chute total no cânone? Só assistindo aos próximos episódios é que podemos ter uma ideia. Vamos ver o que vem por aí. Ah, e só para lembrar: Lorca não fala “engage”. Fala “go!”.

E se você quer ver artigos anteriores de Discovery aqui na Batata Espacial, clique aqui.

 

 

Batata Movies – Blade Runner 2049. Replicantes Indo Além.

Cartaz do Filme

E estreou o tão esperado “Blade Runner 2049”. A ousadia em dar uma sequência a esse filme antológico da História do Cinema criou uma espécie de ideia geral de que a coisa não daria certo e estaria fadada ao fracasso. Essa é a maldição que os remakes e as sequências são obrigadas a passar: elas têm que ser, no mínimo tão contundentes quanto o filme original e o clima de descrédito é quem dita as regras iniciais, ou seja, o filme já começa condenado a largar atrás nessa insólita corrida de convencimento de público e crítica. Ainda mais com um filme do quilate de “Blade Runner”.

K. e Deckard. Em busca do filho de androide…

E qual foi o resultado? Essa película quilométrica, de cerca de duas horas e quarenta minutos, surpreendeu. Hampton Fancher e Michel Green, os roteiristas, e o diretor Denis Villeneuve conseguiram pegar o espírito da coisa e fizeram uma continuação à altura, tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista narrativo. Mas, mais importante que isso, o filme tinha um clima de “Blade Runner” muito pronunciado, impactando o espectador como poucas vezes se vê hoje em dia. Para que a gente possa falar um pouquinho dessa boa continuação, os spoilers serão inevitáveis.

Sensualismo extremo de holografias nuas gigantes

Vemos aqui a história de K. (interpretado por Ryan Gosling), um androide que faz o mesmo papel que Deckard (interpretado por Harrison Ford) fazia: matar androides descontrolados. Mas, como assim? Depois do problema que os androides da Tyrell Corporation provocaram, a empresa acabou falindo, mas o espólio da empresa acabou sendo recuperado por outro megaempresário, Niander Wallace (interpretado por Jared Leto). Foram construídos novos androides obedientes aos humanos, mas os resquícios da linha anterior de androides permaneciam. Ao eliminar um deles numa fazenda, K. percebeu que havia um corpo enterrado por lá e que se tratava de uma androide fêmea, que tinha dado a luz!!! Ou seja, os replicantes conseguiram se reproduzir, algo que era incessantemente procurado por Wallace. Por uma coincidência de datas na sepultura da replicante e nos implantes de memória de K., ele passou a supor que era o tal filho perdido, embora tivesse nascido uma garota também que morreu em seguida. K., então, irá iniciar toda uma investigação para procurar o paradeiro do filho desaparecido, quem era a mãe e se o pai ainda estava vivo (o leitor mais atento já deve ter descoberto quem é esse pai e assa mãe).

Wallace. Sadismo com serenidade

O filme tem vários elementos interessantes. O principal deles é justamente a capacidade dos replicantes se reproduzirem. Ou seja, eles subiram um degrau no seu estágio de desenvolvimento e viraram a fonte de cobiça não somente de K. como também de Wallace. O mais curioso foi perceber como tal processo de reprodução ocorreu inteiramente ao acaso, sendo uma criação da natureza, ao invés de uma criação do homem, que corre atrás dela para estudá-la e procurar gerá-la artificialmente em laboratório. Esse era, pelo menos, o objetivo de Wallace, curiosamente um pesquisador cego que luta contra as limitações de sua pesquisa e de seus próprios sentidos. Por outro lado, a busca de K. já se revela em busca de identidade e de um passado perdido que pode aproximá-lo dos humanos, algo que o androide busca incessantemente, embora ele namore uma bela mulher virtual, Joi (interpretada pela lindíssima atriz cubana Ana de Armas) que também procura se tornar mais humana, o que é um sério problema, pois não há como se conseguir o prazer do toque. A introdução desses elementos novos já mostra como a agora franquia conseguiu ir além.

Claro/escuro mais expressionista que noir. Pessimismo latente

Mas foi dito acima que todo o clima de “Blade Runner” está lá. Os efeitos especiais conseguiram deixar todo o ambiente ainda mais soturno, onde a poluição e a chuva ácida davam o ar de sua (des)graça. É interessante notar que a Los Angeles de 2049 não é mais aquela metrópole homogênea que foi retratada no filme de 1982. Agora temos a cidade representada como uma espécie de enorme favela, mas há também fazendas, lixões e áreas descampadas, tudo com direitos a claros e escuros viscerais que lembravam menos o cinema “noir” (como o “Blade Runner” original lembrava) e muito mais um cinema expressionista, pelo forte contraste e pelo pessimismo latente impresso nas paisagens e imagens em geral. A coisa de se usar uma iluminação associada a um grande tanque d’água no escritório de Wallace deu um lindo efeito que potencializou o claro/escuro e aumentou o clima soturno da coisa. Ainda, dentro da estética vista em “Blade Runner 2049”, houve uma escolha muito feliz de não redesenhar a estética original. Assim, se por um lado tirou-se as japonesas dos telões de outrora e colocou-se imagens de sensacionais mulheres nuas holográficas (a tal namoradinha virtual de K.), por outro lado os anúncios da Atari e da Pan Am ainda estão lá, assim como a propaganda de uma escola de balé da União Soviética. Esse “Fan Service” ajudou em muito na aceitação do filme por parte dos fãs mais antigos de raiz (pelo menos no meu caso; e não devemos nos esquecer de que a versão de 1982 se passa no ano de 2019). Aliado a isso, não podemos nos esquecer de que algumas tomadas nesse novo filme faziam menção direta a tomadas do filme de 1982. O close do globo ocular está lá, assim como uma prostituta que lembra muito a Pris de Daryl Hannah. O convívio entre o velho e o novo também aparece vívido nessa nova versão. Assim, a modernidade dos patrocínios holográficos virtuais convive com os interiores antigos de casas, seja no apartamento de K., ou na cozinha da fazenda.

Fan Service no fotograma!!!

E os atores? A escolha de Ryan Gosling para protagonista foi boa, segundo as más línguas, pois ele faria muito bem o papel de um robô. Mas, brincadeiras à parte, sua interpretação não comprometeu, apesar de muito plana (quando ele deu uma explosão emocional, a coisa destoou um pouco do conjunto da obra). Ford também foi bem, embora fique o estigma de que um ex-protagonista já não possa fazer muito por causa da idade avançada. Foi bom rever Robin Wright, no papel da tenente Joshi, uma policial que conseguia ser uma chefe bem dura mas compreensiva com o subordinado K. Agora, na minha modesta opinião, quem deu um show de interpretação foi Jared Leto. A forma como ele conduziu seu personagem Wallace, com falas bem contidas e mansas, enquanto cometia as maiores barbaridades, foi de dar medo. É impressionante como a serenidade aliada ao sadismo produz um forte impacto. E Leto trouxe isso muito bem. Seu rosto angelical se encaixa perfeitamente bem nesses papéis mais psicóticos. E o ator parece ter plena consciência disso.

Atari de volta em 2049!!!!

É claro que todo filme tem seus problemas. Na minha modesta opinião, foram dois aqui. O primeiro foi a sua longa duração, que deixou a coisa muito maçante em alguns momentos. Um filme mais curto poderia ter contado a história com mais desenvoltura. O outro problema foi no teste que K. precisava fazer para provar a sua fidelidade de androide aos humanos. Ficar repetindo termos incessantemente não pareceu provar qualquer fidelidade aos criadores ou manter características supostamente humanas. Na versão antiga, a gente entendia quando o teste mostrava quando o androide era pego. Aqui, foi uma espécie de devaneio em que a gente não entendia como o androide era aprovado ou não, o que foi uma pena, pois essa parte no filme original era muito marcante e aqui não foi tão bem trabalhada assim. Pareceu algo jogado somente para a gente se lembrar de que havia testes na versão de 1982.

Não parece a Pris, interpretada por Daryl Hannah em 1982???

Assim, “Blade Runner 2049” é um feliz caso de continuação que deu certo. Se o filme não é perfeito em alguns pontos (como todo filme não o é), pode-se dizer que a película acertou em muitos pontos, mantendo o clima do filme original e ampliando a questão estética e narrativa. Novos elementos foram adicionados sem se esquecer do espírito do original. E essas coisas casaram muito bem. Se você é um grande fã de “Blade Runner”, esse é um programa obrigatório. E esse é o tipo do filme que eu vou comprar o DVD depois, até para poder fazer um estudo comparativo mais profundo. Não deixe de ver.