Um documentário brasileiro extremamente polêmico em nossas telonas. “Auto de Resistência”, de Natasha Neri e Lula Carvalho, fala das ações da Polícia Militar em comunidades e periferias do Rio de Janeiro, onde são analisados os casos conhecidos como “autos de resistência”, ou seja, a legítima defesa dos policiais contra supostos ataques de traficantes.
O filme levanta a questão de se esses casos são realmente legítima defesa ou são práticas de extermínio da população mais pobre e desfavorecida, constituindo-se numa verdadeira tragédia social. Muitas vezes, quando aparece na TV os casos de pessoas sendo mortas pela polícia em comunidades, cai-se no lugar comum de que foi bandido e traficante que morreu e que tinha mais é que morrer mesmo. Mas, até onde isso é verdade ou um estereótipo totalmente preconceituoso? E mais: mesmo que a pessoa seja realmente traficante ou bandido, ela tem o direito de ser executada de forma tão bárbara? A polícia não pode ser treinada para atirar sem matar?
Como um exemplo, tivemos uma chacina onde um carro com cinco pessoas foi alvejado 111 vezes pela polícia. Todos esses tiros eram realmente necessários? Num outro caso, dois adolescentes foram alvejados pelo simples fato de estarem correndo de noite na rua. E foi provado, pelas imagens de celular dos próprios adolescentes, de que eles não faziam nada de errado. Quer dizer que, correr na rua de noite já é motivo para você ser executado por vários tiros de fuzil, como registrado na câmara instalada no carro dos policiais? Não poderia haver outro tipo de abordagem que não colocasse em risco a vida de ninguém, sejam policiais, sejam moradores da comunidade? São essas as questões que se colocam ao longo do documentário.
O filme mostra as audiências onde testemunhas das ações policiais depõem, assim como os próprios policiais. Tais audiências são importantes para se ver se o caso será levado ou não a julgamento. Infelizmente, pouquíssimos casos chegam a esse estágio e condenações são praticamente uma exceção, como se houvesse uma legitimação de tal matança.
Enquanto isso, os parentes das pessoas mortas continuam se mobilizando para exigir mais justiça. Pode-se ver, inclusive, a presença de Marielle Franco entre as mães dos mortos nas manifestações, a vereadora que seria assassinada anos depois provavelmente em virtude das denúncias que ela fazia sobre ações policiais em Acari (o documentário se passa no ano de 2015). Aliás, as próprias mães de Acari até hoje não têm resposta por parte do Estado, das mortes de seus entes queridos, numa comprovação de que tais práticas são mais antigas do que se imagina, provocando nos parentes uma dor que não se aplaca e afetando profundamente suas vidas, a ponto de chegarmos a ter mortes por depressão.
Assim, “Auto de Resistência” é mais um documentário onde o cinema cumpre a sua função social de denúncia. Um documentário corajoso, que não tem medo de levantar tais questões, ainda mais numa sociedade extremamente autoritária na qual temos vivido.
Um filme essencial para repensarmos como levamos de forma totalmente partida a população dessa cidade, constituindo-se em dois mundos que pouco se conhecem, se estranham e se tratam com muita violência. E, enquanto isso acontecer, não há qualquer perspectiva de melhora para o Rio de Janeiro.