Batata Movies – Wajib, Um Convite De Casamento. Visões De Mundo Conflitantes.

Cartaz do Filme

Uma excelente produção palestina. “Wajib, Um Convite De Casamento” é mais uma dos filmes sobre o inesgotável tema da questão árabe-israelense. Só que, desta vez, o campo de batalha se passa dentro do próprio cerne palestino, tendo como pano de fundo a relação entre pai e filho. Vamos lançar mão de spoilers aqui.

Pai e filho numa importante missão…

O plot é muito simples. Abu Shadi (interpretado por Mohammed Bakri) e seu filho Shadi (interpretado por Saleh Bakri) viajam pelas ruas de Nazaré para distribuir convites de casamento da filha da família. O que parece ser uma história muito morosa e simplória, tem nas suas entrelinhas a grande força. O filho, Shadi, é um rapaz que vive na Itália, exerce o ofício de arquiteto, e já não está muito apegado às práticas e tradições do povo palestino. Já o pai, Abu, é o oposto. Nunca tendo saído de Nazaré, ele é uma espécie de guardião da tradição e se incomoda um pouco com o jeito moderno do filho. Ou seja, mais uma vez o embate tradição – modernidade se dá aqui. Mas, desta vez, há um elemento a mais, pois a questão entre judeus e palestinos introduz novos parâmetros para discussão.

Uma noiva…

E a diretora e roteirista Annemarie Jacir não economiza na discussão, com um lado mais virtuoso e outro mais problemático. Aqui, a tradição e a modernidade dialogam em pé de igualdade, cada uma com suas virtudes e defeitos. Vejamos. O jovem Shadi, é adepto de uma sociedade mais livre e menos apegada às tradições. Mas não se conforma que o pai Abu convide um amigo judeu para a festa de casamento. Shadi vê o judeu como um censor do sistema educacional palestino, proibindo a eles o estudo de sua própria história palestina. Já Abu vê o judeu como um amigo, mas também com uma pessoa que tem um poder demasiado grande para fazer o mal. Logo, é melhor para Abu ter uma coexistência pacífica com esse amigo-inimigo, algo que Shadi não aceita de jeito nenhum. Por outro lado, a mãe da família fugiu com outro homem e foi morar no exterior. Agora será a vez de Shadi pedir tolerância para o pai, pois a mãe queria descobrir mais o mundo, respirar novos ares, etc. E o pai não se conforma com a possibilidade da ex de não ir ao casamento, já que o novo marido está doente e pode morrer a qualquer momento. Na verdade, fica muito difícil a gente tomar partido de pai ou filho.

Distribuindo convites de casamento…

Os dois possuem motivos altamente justificáveis para manter suas convicções. Shadi não se conforma com o amigo judeu do pai mas ele também foi embora e não ficou para enfrentar a situação de duro domínio israelense. Por outro lado, Abu pisa em ovos para poder sobreviver num ambiente violento, mas até quando ele continuará a tomar uma postura tão submissa? Ainda, uma mágoa tão grande quanto perder a esposa para outro homem é muito difícil de ser superada. Mas, até onde ficar remoendo isso? Dá para perceber como a película é muito rica em reflexões de vida e extremamente complexa.

Momentos de desentendimento…

Outro ponto que o filme deixa bem claro é o grau de degradação que a população palestina passa com a ocupação israelense. Muito lixo espalhado pela rua, pessoas se comportando de forma agressiva umas com as outras, soldados israelenses andando armados de fuzis em plena população palestina e ainda entrando em suas lojas. O filme consegue ter um clima bem ácido nesse contexto. Mas também temos interessantes amenidades, manifestas principalmente nos convidados que recebem o convite em suas casas. Temos todo um espectro de personagens bem superficiais mas nem menos interessantes por causa disso, que é uma coisa que ajuda muito a prender a atenção do espectador.

Sob a sombra de quem oprime…

Dessa forma, pode-se dizer que Wajib é um grande filme, pois aborda novamente a questão da tradição e da modernidade, saindo do maniqueísmo e analisando virtudes e defeitos desses dois pólos. Para uns a tradição pode ser cheia de atributos e qualidades, enquanto que para outros, ela não passa de um atraso de vida. O mesmo pode acontecer com a modernidade. Tais visões de mundo também são complexificadas  pela situação de guerra e de conflito entre palestinos e judeus. Abraçar a modernidade é fugir das tradições e de seu povo? E abraçar a tradição, sobrevivendo pacificamente com seu algoz? É um ato de covardia ou de traição? Essas são as perguntas típicas de não possuírem a resposta correta, já que elas implicam numa pluralidade de reflexões. Aqui, só há uma certeza: Wajib é mais um filme imperdível.

Batata Movies – O Anjo. Mau Caratismo E Más Companhias.

Cartaz do Filme

Um filme argentino perturbador. “O Anjo” fala da história real de um bandido que sacudiu a Argentina em 1971, em plena ditadura militar. Vamos, mais uma vez, lançar mão dos spoilers aqui.

Um angelical psicopata…

Carlos (interpretado por Lorenzo Ferro) era um jovem rapaz de classe média que estava fora de todas as convenções do que seria um larápio: era bonito, com uma base familiar considerada sólida, estudava numa escola conceituada. Mas Carlos tinha outras “qualidades”. A principal delas era ser um perigoso psicopata que não tinha qualquer limite e via na ousadia do roubo seu modo de vida, onde ele amava a liberdade de transgredir tudo o que visse à sua frente. O problema é que ele exagerava, e muito, em seus delitos, justamente com o intuito de desafiar seus limites pessoais.

Com o amigo Ramón, entrará de cabeça no mundo do crime…

E não tinha qualquer pudor em matar. Carlos irá ter um companheiro de crimes, o colega de escola Ramón (interpretado por Chino Darín), cuja família não era muito chegada a atividades mais lícitas. Aqui, podemos destacar as atuações de Daniel Fanego, o pai, e Mercedes Morán, a mãe, mais oferecida e sensual do que nunca. Chamou muito a atenção essa família criminosa e amoral, onde Carlos se encaixa como uma luva, mas que também causa problemas por suas atitudes exageradas no seu novo ofício.

Aprendendo a matar com o pai de Ramón…

Outro detalhe que chama muito a atenção era o caráter andrógino de Carlos. Ele chegava a flertar com Ramón e rolava até um ciuminho, o que, para um psicopata, pode levar a uma situação fatal. Essa sexualidade aflorada aparecia nos roubos de joalherias, onde Carlos usava brincos se chamando de Marilyn Monroe e até de Evita. É claro que isso teve uma enorme repercussão da mídia da época, onde a ditadura militar estava a todo vapor, e provocou um clima enorme de curiosidade, dando a Carlos uma dimensão mítica no imaginário da época.

Levando as mocinhas para o mau caminho…

Mais uma curiosidade do filme: Carlos desafiava, como vimos acima, os estereótipos do bandido da época. Num momento do filme, até vemos sua face sendo medida, pois no pensamento da época, era possível “identificar” quem tinha propensão para o crime através das medições das dimensões do rosto, ou seja, as dimensões do rosto de uma pessoa negra seriam as mais propícias para quem tem propensão ao crime. Na verdade, essa técnica de “medição” era algo também feito no Brasil no início do século passado.

Um assassino frio…

É curioso notar como a ditadura argentina, em plena década de 70 do século XX, ainda usava uma técnica corriqueira nas primeiras décadas do século XX. Aliás, ainda fica mais uma curiosidade: de como os jovens amigos, parceiros de crime, estavam alheios ao autoritarismo da polícia na época e que só têm um contato mais aprofundado com todo o contexto político da época quando começam a ser perseguidos pelas forças do estado por seus crimes, revelando uma faceta da violência da época.

Ciúmes possessivos com o amigo…

E os atores? Lorenzo Ferro consegue convencer ao fazer um papel extremamente difícil, pois ele desperta sentimentos altamente conflitantes. Seu personagem tem um leve cinismo, é uma espécie de filho de comportamento bom sereno, mas pode ser também um assassino bem frio e repugnante. É realmente um personagem muito complexo que exige muito do ator. E, dada a juventude de Ferro, seu trabalho é muito marcante. Já Chino Darín pareceu ter um papel um pouco mais fácil, pois ele se portava muito mais de forma delinquente, com pouquíssimas nuances. É de se notar como ele estava mais parecido com seu pai, Ricardo Darín, provavelmente por seu corte de cabelo nessa película. Outra atriz que merece destaque é Cecilia Roth (sua presença aqui muito provavelmente teve a mão dos irmãos Almodóvar, que estão entre os nomes da produção dessa película), no papel da mãe de Carlos, que era extremamente complacente com o filho, convencendo bastante e sendo uma ótima aquisição ao elenco.

Chegando a situações extremas…

Dessa forma, “O Anjo” é um intrigante filme argentino que trata de uma história real que chega às beiras da repugnância pela maldade e comportamento fútil de seu protagonista. Um filme que mostra uma ótima atuação de um jovem ator como Lorenzo Ferro, que teve a difícil missão de interpretar um personagem bem complexo, onde um ar angelical e feminino anda de mãos dadas com uma psicopatia doentia. Um filme de grandes atores como Chino Darín, Mercedes Moran e Cecilia Roth. E mais um filme que mostra os assombros de uma ditadura militar. Vale a pena dar uma conferida.

Batata Movies – Amanda. Delicado, Mas Podia Ser Um Pouco Menos.

Cartaz do Filme

Um filme francês que dá pano para a manga para uma reflexão. “Amanda” lança mão de um expediente já batido quando se pretende fazer filmes fofinhos: usar crianças doces e meigas. Aqui, temos a menininha Isaure Multrier fazendo a protagonista Amanda, um poço de fofura, uma menina totalmente comportada e muito sensível.

Uma menina muito fofinha…

Infelizmente (alerta de spoiler), Amanda perderá sua mãe de uma forma bem trágica, através de um atentado terrorista muito traumático. A mocinha ficará, então, sob as responsabilidades do tio, David (interpretado por Vicent Lacoste), um jovem de 24 anos que poda árvores públicas e trabalha também alugando imóveis. Nem é preciso dizer que David tem pouca experiência em cuidar de uma criança pequena, além do fato de a perda ter sido extremamente traumática tanto para ele quanto para Amanda. Numa hora dessas, de momentos de extrema fragilidade, feridas do passado também se abrem. É que David nunca conheceu a mãe pessoalmente, uma inglesa que não mais retornou à França. Antes de morrer, a mãe de Amanda marcou uma viagem para a Inglaterra para assistir ao torneio de Wimbledon de tênis. Essa será uma boa oportunidade de David a Amanda conhecerem uma parente próxima que vive muito distante.

Um tio sensível e delicado…

Esse filme tem dois pólos que precisamos tratar aqui. Em primeiro lugar, a coisa é muito doce, muito delicada. Temos uma trama que gira basicamente em torno da relação entre Amanda e David. Sensibilizados pela dor de uma perda tão trágica, os dois praticamente têm somente um ao outro e precisam aprender a conviver com isso.

Irmãos unidos…

Dentro desse ritmo, o filme traz momentos muito singelos e prosaicos. É realmente uma película cheia de muita ternura e emoção, sendo essa uma grande virtude. Entretanto, tal coisa tão singela pode ser também um problema. E aí chegamos ao outro pólo: o filme parece soar muito artificial e superficial em alguns momentos. Numa situação real, não haveria espaço para tanta singeleza e até letargia. Perdas violentas levam a reações violentas. David não podia ter apenas acessos de choro o tempo todo. A revolta tem que aflorar aqui. Isso é algo normal numa situação tão extrema quanto essa. Por outro lado, Amanda chega até a levar uma advertência, mas isso é apenas citado no filme.

Dividindo uma perda…

Seria interessante entender por que a menina levou a punição. No mais, só o choro compenetrado de ambos os protagonistas. Infelizmente, isso parece soar muito falso. Existe um espaço para o inconformismo e a revolta que são até sadios em tais circunstâncias e que não foi aproveitado. Nem a rusga do passado entre David e sua mãe foi melhor trabalhada quando da viagem do rapaz à Inglaterra. Civilizado demais para as agruras da vida real.

Tem horas que o choro é inevitável…

De qualquer forma, a atuação de Multrier merece um destaque todo especial, principalmente ao seu final, onde a menininha começa a ter um acesso de choro em plena quadra central de Wimbledon. À medida que seu tenista perde o jogo, ela se lembra do que a mãe falava de Elvis Presley, quando ele “deixa o prédio do teatro onde fez seu show” e isso foi anunciado para as fãs. Desde então, a expressão “deixar o prédio” significa o fim de algo. A mocinha, ao ver seu tenista perdendo, vê o fim, assim como sua mãe teve um fim, e começa a chorar progressivamente. Realmente foi algo muito impressionante ver uma menininha atuar de forma tão profissional para a sua idade, sendo esse o momento do filme que vale o ingresso.

Uma nova vida a dois…

Assim, “Amanda” é um filme onde sua grande virtude – a delicadeza – pode ser também o seu maior problema. A ternura envolvente é excessiva e implausível, mas ainda assim cativante, o que faz essa película valer a pena.

Batata Movies – Sobibor. Doloroso E Catártico.

Cartaz do Filme

Uma notável co-produção Rússia/Alemanha/Lituânia/Polônia. “Sobibor” é mais uma produção do vasto rosário de filmes sobre a Segunda Guerra Mundial. Mais um filme que fala do genocídio nazista. Mais um filme que fala dos horrores de um campo de concentração. Aí, o leitor pode se perguntar: então é mais do mesmo? Não, não é. Pois Sobibor é visceral. Sobibor é catártico. Sobibor traz um fio de esperança. E tudo baseado numa história real, o que é ainda mais incrível. Vamos lançar mão dos spoilers aqui.

Chegando ao campo… no início, parece tudo bem…

O filme mostra basicamente a política de extermínio dos nazistas. Então, desde cedo, somos condicionados a estar lado a lado com as atrocidades. A primeira cena de impacto é o assassinato de prisioneiras na câmara de gás, para já provocar um trauma forte no espectador. Com o tempo, mais fatos odiosos vão acontecendo, como as execuções aleatórias de prisioneiros (um tiro na cabeça a cada dez prisioneiros ajoelhados em fila) depois de uma tentativa mal sucedida de fuga, os chicoteamentos gratuitos e humilhantes, o trabalho escravo e os assassinatos cruéis em festas onde os prisioneiros eram usados como mulas a puxar carroças com nazistas até a exaustão, quando eram executados sob gargalhadas de oficiais da SS bêbados.

Dois homens em pólos opostos…

Ou seja, tudo é planejado meticulosamente para o espectador ficar com sangue nos olhos e desejar até o fundo da alma que os nazistas sejam trucidados mais tarde. Há um pequeno detalhe. O campo de Sobibor, em solo polonês, está para ser encerrado, pois estamos no ano de 1943 e os alemães já são espremidos de volta à Europa pelas tropas do Exército Vermelho vindas do Oriente. Ou seja, todos os prisioneiros serão exterminados ao fim das contas. É aí que um grupo de prisioneiros soviéticos procura planejar uma fuga do campo. Entretanto, é muito difícil colocar o seu plano em curso, pois a maioria dos prisioneiros, pelo medo intenso, prefere não desobedecer aos nazistas.

Pouquíssimo tempo para o amor…

Assim, os soviéticos terão que colocar o plano em curso por conta própria. A ideia é simples: atrair os nazistas, um de cada vez, a uma parte mais erma e isolada do campo, assassiná-los e esconder o corpo, até que todos sejam mortos e os prisioneiros possam sair pela porta da frente. Mas o plano será descoberto pelos nazistas e a fuga será improvisada e sob uma saraivada de tiros. Quatrocentas pessoas fugiram do campo, sendo que cento e cinquenta foram assassinadas pelos nazistas posteriormente e mais cento e cinquenta foram denunciados pelos habitantes locais e assassinados, segundo o que foi dito na película. Dos poucos que restaram, alguns ainda lutaram na guerra ao lado dos partisans. E um ex-prisioneiro ainda veio para o Brasil e conseguiu matar dezoito nazistas escondidos por aqui (!!!).

Participação de Christopher Lambert…

O filme tem duas curiosidades. A primeira é que a morte dos nazistas, por parte dos prisioneiros, é extremamente violenta. Como dito acima, o filme é todo preparado para a gente odiar os nazistas até o fundo da alma. Mesmo assim, se questiona a matança dos nazistas. Alguns prisioneiros se chocam ao responder com igual monstruosidade a monstruosidade dos nazistas, embora logo apareça um prisioneiro para dizer que a reação é altamente justificável, em função das atrocidades cometidas pelos alemães.

Momentos de violência explícita…

Outro detalhe interessante é a participação de Christopher Lambert (isso mesmo, o highlander McLaud!!!) no filme, como o chefe do campo, que foi ferido na fuga e, mesmo assim, sobreviveu até 1996, quando estava na prisão por seus crimes de guerra (definitivamente, vaso ruim não quebra). Há um momento muito pitoresco, quando o chefe do campo, baleado e sentado no chão, assiste à fuga dos prisioneiros e os vê cumprimentando tirando o chapéu quando passam por ele, para mostrar como não há rancor entre os prisioneiros que não participaram da revolta em si, somente da fuga.

Nazista com smartphone? Não, é só o intervalo das filmagens…

Assim, “Sobibor” é um filme imperdível, daqueles para se ver, ter e guardar. Um filme que mostra mais uma vez, de forma nua e crua, os horrores da guerra e do nazismo. Mas que também fala do único caso verídico de fuga bem sucedida de um campo de concentração alemão. Vale muito a pena assistir.

Batata Séries – Jornada Nas Estrelas Voyager (Temporada 6, Episódio 17) “Spirit Folk” (Espírito Do Povo). Inquisição Holodeck.

Uma comunidade prosaica…

Dando sequência às nossas análises de episódios da sexta temporada de “Jornada nas Estrelas Voyager”, falemos hoje de “Spirit Folk”, o 17º episódio. Esse é o típico “episódio holodeck” e algumas pessoas torcem o nariz para esse tipo de episódio, pois ele não se foca no retorno da Voyager à Terra e nos problemas que podem surgir no espaço à medida que a nave avança para casa. Entretanto, pode-se dizer que o episódio é um tanto divertido, pois um bug daqueles meteu bastante gente em apuros.

Mulheres que viram vacas????

O plot consiste num programa de holodeck desenvolvido por Tom Paris (sempre ele!) que, de tão carregado, exigiu demais das máquinas e começou a dar problemas, já que o programa roda continuamente. O programa é sobre uma cidadezinha do interior da Irlanda chamada Fair Haven (ela já apareceu no 11º episódio da sexta temporada) e os personagens do programa começam a notar que os tripulantes da Voyager fazem coisas, digamos, mágicas, como transformar mulheres em vacas, acabar com um tempo nublado e substituí-lo por um dia ensolarado, ou tirar uma criança que estava presa num buraco sem um ferimento sequer. Isso acontece em virtude do bug que o programa está sofrendo por ficar rodando continuamente.

Um Doutor Padre…

Assim, os moradores de Fair Haven acham que estão lidando com espíritos que amaldiçoam a cidade. O único morador que não cai muito nessas ideias com fundo de crendice popular é Michael, o dono do bar e o “namorado” de Janeway. Ele chega a ser “capturado” por Kim e Paris para ser “consertado” e não perceber mais que os tripulantes são de uma nave espacial. Mas ele finge que foi consertado e retorna para Fair Haven falando de tudo o que viu. Quando Kim e Paris estão novamente no programa para fazer mais alguns ajustes, são capturados pelos moradores da cidade, que tentam fazer todo o tipo de magias para expulsar os “maus espíritos”. O Doutor (que fazia as vezes de padre) é enviado para lá para detê-los e tem o seu emissor móvel (usado para deixá-lo livre da influência de um programa com bugs) retirado. Com isso, ele é “hipnotizado” e começa a abrir o jogo. Michael pega o emissor móvel e Janeway pensa que é o Doutor, ordenando o transporte. Como resultado, Michael aparece na ponte da Voyager. Será aí que a capitão abre o jogo sobre tudo o que está acontecendo. Assim, os personagens e a tripulação acertam uma espécie de convivência pacífica, onde os personagens serão mantidos no banco de dados do computador da nave e, eventualmente receberão visitas da tripulação.

Um Doutor enfeitiçado…

Pois é, creio que sou obrigado a concordar que é um episódio um tanto mediano. De chamar a atenção alguns poucos pontos: foi hilário ver alguns personagens virtuais se revoltando contra a tripulação e os tais bugs desabilitando os protocolos de segurança do holodeck, deixando-os totalmente perigosos (o tiro de espingarda que um painel do holodeck toma é muito engraçado). Outro detalhe é ver como os personagens falam de crendices populares na virada do século XIX para o XX (Paris dirigia um protótipo dos primeiros automóveis) de uma forma totalmente medieval, pensando até em queimar literalmente Paris, Kim e o Doutor. Exagero? Pode ser que não.

Um holograma à solta…

Em certos lugares por aí ainda vemos hoje um comportamento muito medieval e não são personagens de holodeck, mas pessoas da vida real, em carne e osso, vivendo em plena 2019, onde a tecnologia e a informação seriam suficientes para pessoas não dizerem mais sandices como a Terra ser Plana ou a inexistência da força de gravidade. Pelo menos havia Michael, um personagem que é a voz do racionalismo e da ciência, nadando contra a maré irracional da cidade, mergulhada em mitos ancestrais. É curioso que tal clima irracional tenha sido todo provocado por um bug no programa do holodeck, com se isso sacramentasse a incoerência de uma tradição e glorificasse o racionalismo da modernidade. Voltamos aos parâmetros erráticos de um passado ancestral por um problema num programa de computador moderno. Se o programa não tivesse alguma falha, tudo correria às mil maravilhas, dentro da lógica.

Deu ruim, Janeway…

Assim, “Spirit Folk” (“O Espírito do Povo”) não chega a ser um dos melhores episódios de “Jornada nas Estrelas Voyager”, mas traz de novo a discussão entre tradição e modernidade de forma um pouco maniqueísta, criticando a primeira e exaltando a segunda. A única coisa a se relativizar é o fato de que o clima prosaico antigo é valorizado a ponto de os personagens não serem simplesmente apagados do computador (tal como B’Elanna e Sete de Nove, numa análise mais fria, queriam). Revisite, mas não espere muito.

Batata Movies – Duas Rainhas. Absolutismo, Reforma E Machismo

Cartaz do Filme

Um interessante filme histórico que terá aqui muitos spoilers. “Duas Rainhas” aborda a conturbada relação entre Inglaterra e Escócia à época da Rainha Elisabeth, da Inglaterra, e a Rainha Mary Stuart, da Escócia. Parentes muito próximas (eram primas), uma acabava sendo ameaça ao poderio da outra. E, como se não bastasse esse problema, ainda havia o explosivo ingrediente da religião, pois Elisabeth era anglicana (a rainha era filha de Henrique VIII, fundador dessa religião protestante) e Stuart era católica. Interpretadas por Margot Robbie (Elisabeth) e Saoirse Ronan (Stuart), essas duas rainhas jamais haviam se visto e tiveram que enfrentar um machismo violento da época em que uma mulher manter sua autoridade absoluta sobre uma corte totalmente masculina era um enorme desafio.

Uma rainha em busca de muito poder…

Fica, também, muito clara a posição de inferioridade da Escócia perante à Inglaterra, se bem que a maior oposição que Stuart recebeu veio de seu próprio país, sobretudo na figura de seu irmão James (interpretado por James McArdle) e nas ferozes investidas do líder anglicano local, que subverteu completamente a opinião pública contra a rainha. O país chegou a ter um arremedo de guerra civil, com os dois irmãos lutando em lados opostos. Outros aspectos referentes à cultura de Antigo Regime são abordados, tais como conspirações e tramoias políticas, assassinatos violentos em nome de preceitos morais e defesa da honra e, principalmente, a questão de casamentos arranjados para costurar acordos políticos, numa época onde público e privado muito se confundiam.

Ela vai liderar movimentos contra os ingleses, mas enfrentará um guerra civil…

Infelizmente, o desfecho foi muito trágico para Stuart: ela teve que abdicar do trono em função de sua alta impopularidade e acabou exilada na Inglaterra, sob os cuidados de Elisabeth, até ser condenada à morte em 1587, acusada de conspirar contra a vida da Rainha da Inglaterra. Pelo menos seu filho James I se tornou o primeiro Rei da Inglaterra e Escócia unidas, já que Elisabeth (conhecida como a Rainha Virgem) não deixou herdeiros.

O irmão pode se revelar um verdadeiro inimigo…

O filme também deixa clara um certa falta de tato por parte de Stuart de negociar com todos os varões do macrocosmos político do período, muito provavelmente por ter que afirmar sua autoridade absoluta num meio totalmente machista, o que a levava a errar a mão nas negociações (em momentos pontuais, onde ela precisava ser um pouco mais diplomática, ela batia o pé e buscava afirmar a sua autoridade, o que acabou provocando situações demasiadamente espinhosas).

A Rainha Virgem (que medo…)

E as atrizes que interpretaram os papéis protagonistas? Ronan teve muito mais tempo de tela do que Robbie, ficando bem mais exposta. Pela característica impetuosa de sua personagem, parece que a atuação de Ronan em alguns momentos chegou perto do exagerado, embora ela tenha segurado bem a sua responsabilidade de protagonista principal. Ronan teve que fazer um desenvolvimento muito mais complexo da atuação, pois havia momentos em que ela era a monarca compreensível, a monarca autoritária e intolerante, ou a mocinha que trocava confidências com suas camareiras. Já Robbie fez uma personagem bem mais solene, com poucos momentos de fraqueza, além da maquiagem de Elisabeth ajudar a provocar um tremendo impacto visual (houve momentos em que Robbie dava medo!). Ou seja, pareceu que Robbie teve uma tarefa um pouco mais fácil que a de Ronan.

Momentos prosaicos de moça…

Dessa forma, “Duas Rainhas” é um bom filme histórico, altamente recomendável, pois podemos ver toda uma lógica de funcionamento do Antigo Regime, ainda mais num contexto de lutas entre protestantes e católicos, e também uma querela Escócia X Inglaterra, que já produziu outros bons filmes históricos (podemos nos lembrar de “Coração Valente”, com Mel Gibson e, mais recentemente, a boa produção da Netflix “Legítimo Rei”, com Chris Pine). É, também, uma película de duas jovens atrizes com bons desempenhos, sendo que Saoirse Ronan teve muito mais tempo de tela do que Margot Robbie, sem falar que a personagem Mary Stuart era mais complexa que a personagem Elisabeth aqui nesse filme. Vale muito a pena dar uma conferida.