Ainda sobre o Festival do Rio 2017. Na Última Chance, teve-se a oportunidade de assistir ao filme “Antipornô”. Escrito e dirigido por Sion Sono, esse é o tipo da película em que a gente precisa captar o que quer ser dito bem lá nas entrelinhas. Eivado de um conteúdo bem surreal, o filme quer falar de aspectos da função da mulher na sociedade japonesa, sociedade essa que, segundo as más línguas, vê a mulher de uma forma bem preconceituosa e possessiva.
Mas, no que consiste a história? Vemos aqui uma ninfetinha muito sensual, Kioko (interpretada por Ami Tomite) numa espécie de ritual de autocelebração. Em trajes mínimos, com uma nudez mal disfarçada, a moça recebe uma visita sendo cultuada por uma equipe de produção muito exótica, com direito até a dominatrixes. Para se sentir muito poderosa, ela lança mão da humilhação pública à sua secretária particular, Noriko (interpretada por Mariko Tsutsui), uma mulher de meia idade totalmente submissa à sua jovem patroa, que pinta e borda com a secretária, obrigando-a a andar de quatro e a estimular a jovem sexualmente, isso quando não é obrigada a se deixar estuprar pela tal equipe exótica. O circo de horrores das humilhações à secretária permanece, até que vem a palavra “Corta!” invertendo completamente o contexto. Na verdade, víamos uma filmagem e agora é Kioko quem é humilhada por todos, principalmente por Noriko, que é uma atriz consagrada enquanto que a ninfetinha somente começa a dar os seus primeiros passos, sendo, portanto, desprezada com veemência, onde até a agressão física é utilizada. Esse é mais ou menos o fio narrativo condutor da película, que acaba passando por vários momentos surreais de pura transgressão, com o intuito de alfinetar qualquer paradigma mais tradicional. Há uma clara intenção de atacar a moral e os bons costumes com uma retórica do absurdo de forte apelo sexual. Pouco a pouco, a narrativa vai perdendo a coesão até ficar totalmente fragmentada, guardando ainda em seu interior a ideia principal, que é a de que a mulher japonesa, apesar de viver numa sociedade teoricamente livre, civilizada e tecnológica, ainda assim é tratada com desdém e com repressão por uma componente masculina altamente machista. E a única alternativa para essa mulher é repudiar totalmente essa suposta “liberdade” de uma forma extremamente violenta, onde a liberdade reside em ser dona do seu próprio corpo e buscar um prazer sem limites. Ou seja, a verdadeira liberdade reside em ser uma verdadeira puta, que não tem limites para a sua transgressão.
Com tal afirmação de cunho bem extremo, o filme se transforma numa sucessão de imagens onde o sexo explícito, a nudez, o sadomasoquismo e as fortes cores ditam o tom. Devo confessar que esse espírito transgressor extremado chega em alguns momentos até a ficar maçante, mas por outro lado, é muito curioso que haja essa explosão num produto cultural japonês, que consegue conciliar com maestria tradição e modernidade. Em “Antipornô”, por sua vez, a tradição é totalmente rechaçada e até ridicularizada, nas cenas de sexo explícito do casal conservador perante a mocinha de sensualidade a la Sailor Moon, ou seja, aquela coisa inocente, mas nem tanto. Sabemos que existe todo um fetiche em cima das adolescentes estudantes com roupa de marinheiro lá no Japão, algo que o patrulhamento ideológico de certos países subdesenvolvidos gritaria como pedofilia pura. Parece que o Japão não vê as coisas da mesma forma e se abre um pouco mais a esses fetiches, justamente num país com baixas taxas de natalidade se comparadas com as do nosso. Perversão? Válvula de escape? Que cada um tire suas próprias conclusões.
É curioso também notar como a troca de papéis entre as duas protagonistas busca espelhar esse papel submisso da mulher na sociedade japonesa. A submissão de Kioko no mundo real é muito maior que a submissão de Noriko no mundo da fantasia. Esse último é um mundo de mulheres, onde a humilhação desvirtua a tradição, ao passo que o mundo real é mais um mundo de homens, onde a mulher e sua sensualidade é que são desvirtuadas. Logo, a humilhação acaba sendo muito mais forte nesse mundo real, definindo um contraponto altamente desproporcional.
Dessa forma, “Antipornô” tem o grande mérito de destrinchar o papel da mulher na sociedade japonesa contemporânea, lançando mão de uma linguagem agressiva, onde a mensagem reside mais nas entrelinhas do que em qualquer outra coisa. O filme é agressivo e tem a nítida intenção de incomodar. Se você sai ileso de toda essa torrente irracional, você conseguirá detectar um discurso bem racional em seu interior. E é isso que dá grandeza à película, ou seja, uma pílula de bom senso mergulhada em litros de nonsense. Vale a pena procurar essa película por aí nos Youtubes da vida. Mas não se choque, por favor.